Arte e Teoria em Portugal no pós-Renascimento. A Caligrafia e a Iluminura.

5 Dezembro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

     Pistas de trabalho e referenciais de investigação.

    Sabemos algumas coisas mais sobre a produção literária portuguesa no campo da estética e da teoria das artes no pós-Renascimento. Trata-se de um campo de estudos que impõe uma atenção maior face ao aparente deserto de referências subsistentes. Por um lado, dispomos de textos como os do filósofo Léon Hebreu sobre a metafísica do amor inserida numa cosmologia neoplatónica  [1] e os do ieronimita Frei Heitor Pinto [2], já referidos, e de poetas como Jerónimo Corte-Real e Luís de Camões [3], em cujas obras os referenciais pictóricos abundam, com alusões plásticas subtis [4]; por outro, é certo que dos livros produzidos com um declarado empenho nos receituários perpassa também um esforço de conceptualização das artes. Uma obra como o tratado Arte Poética & da Pintura de Filipe Nunes (um pintor de Vila Real que integrou depois a ordem dominicana com o nome de Frei Filipe das Chagas), dada à estampa em 1615 e que recebeu algum sucesso de mercado [5], ou o quase coevo Breve Tractado de Iluminaçam, manuscrito de um anónimo frade da Ordem de Cristo, cerca de 1635, devem ser considerados mais como receituários, ou manuais práticos do exercício das várias modalidades da pintura, do que propriamente tratados de arte no seu sentido mais lato.

     Entretanto, importa atentar em escritos de outros autores dos séculos XVI e XVII, como o cronista e gramático João de Barros [6], o humanista Francisco de Monzón [7], o mal conhecido Giraldo Fernandes de Prado, pintor-fidalgo da Casa de Bragança [8], a figura obscura do escritor  Francisco de Sólis, autor no princípio do século XVII de uma Vida de alguns pintores, esculptores, e architectos [9], ou a obra do arquitecto e iluminador Luís Nunes Tinoco Elogio da Arte da Pintura [10], para se concluir que afinal existiu mesmo interesse, em círculos intelectuais não forçosamente restritos, pela literatura sobre as artes em que em todos eles se moveram, e que se produziam opiniões sobre o papel que lhes cabia e sobre o estatuto social a tributar aos seus melhores praticantes. Em 1550, a realidade artística nacional alterara-se em substância e é nesse contexto que o debate sobre o sentido das artes inevitavelmente se centrava [11]. Nesse ano morreu Gregório Lopes, o célebre pintor régio de D. João III e cavaleiro da Ordem de Santiago, cuja influência na geração maneirista experimental foi duradoira, inspirando a arte de Diogo de Contreiras e de outros artistas. Com o fecho da feitoria de Antuérpia em 1548, o olhar dos nossos clientes mais cultos deixava de privilegiar as obras e modelos oriundos da Flandres e passava a sentir o frémito das novidades italianas pós-renascentistas. O conceito de «despejo», alvo das reflexões de Francisco de Holanda a partir dos seus intensíssimos diálogos em Roma com o grande Miguel Ângelo Buonarroti, que lhe recomendava o uso dos «spaços vazios e dilatados para darem despejo e clareza a sua obra, e para terem os olhos dos que a veem caminho e campos por onde caminharem» [12], é já um testemunho directo dessa nova realidade: «aprenda a fazer muito pouco e muito bem, e quando comprir fazer muito e muito compartimentadamente, o fogir do feo e sem graça, o buscar nos mores descuidos por que os outros passam levemente, escolhendo sempre o mais pouco, e melhor, entre o melhor, e o despejado e os espaços, fora dos entricamentos da confusão e do máo eleger». Os desenhos e pinturas maneiristas portuguesas, de Campelo a Salzedo e Venegas, seguiram esse procedimento miguelangesco, generalizado pela tratadística e pela prática da Bella Maniera italiana, sendo de crer que também os «debuxos» feitos pelo Holanda para as câmaras afrescadas no Paço Real de Xabregas (pintadas por Gaspar Dias) [13] seguissem esse ostensivo gosto maneirista, com figuras ciclópicas e escalas «despejadas».

     De facto, é importante não se perder esse ponto de vista, nesses anos fervilhantes de viragem chegavam obras, ideias, tratados, gravuras e, sobretudo, testemunhos directos de experiências, acentuadas pela passagem por Roma de artistas portugueses que lá iam aprender o disegno; mesmo os flamengos que vinham a Portugal, como o retratista Anthonis Moro em 1552, Joozis van der Streten e Simón Pereyns em 1556, e Francisco de Campos, se mostram senhores de uma cultura artística crescentemente romanizada. Antes mesmo do casamento de D. Maria de Portugal, filha do Infante D. Duarte, com o célebre Alessandro Farnèse, já as relações culturais entre Lisboa e a corte de Parma eram uma realidade (mal pressentida embora pelos estudiosos), em contactos que não deixaram de se acentuar após 1567 e até à morte da Infanta em 1577, o que explicará o peso dos modelos de, por exemplo, um Parmigianino na obra de Gaspar Dias... e não só modelos, mas também as estampas, e o conhecimento dos tratados, se impunham neste percurso de conhecimentos. Por Florença e Roma passa Lourenço de Salzedo, que se inspira em Girolamo Siciolante da Sermoneta [14], pela Cidade Papal estadeiam também Campelo, que colhe lição nos círculos de Daniele da Volterra, Francisco Venegas, cuja derivação de modelos de Perino del Vaga e também de Vasari é notória, e ainda João Baptista, António Leitão, e Simão Rodrigues, este último educado nas «receitas» do tempo de Sisto V, e até o secundário pintor de Penacova Álvaro Nogueira e, enfim, o lisboeta Amaro do Vale e o eborense Pedro Nunes, estes já no início do século XVII. Sabemos, assim, que a pintura portuguesa do tempo de Camões, ao longo da segunda metade do século XVI (antes e mesmo depois da instauração da Monarquia Dual), acompanhou de modo sui generis, com consciência das novidades e naturalmente também das ideias teorizadas prevalecentes, o Maneirismo dimanado dos centros italianos. O que antes era visto como deformação mal assimilada passou justamente a ser entendido, fruto do conhecimento de princípios que a tratadística difundia, como sinal de uma actualização artística raras vezes verificada na história da arte nacional com o mesmo sentido de mudança e consciência da novidade…


    Giraldo Fernandes de Prado, entre a pedagogia, a pintura e o desenho das letras.

     Autor do mais antigo tratado de Caligrafia em Portugal, Giraldo Fernandes de Prado (c. 1530-1592) é ainda uma personalidade muito desconhecida dos estudiosos. A biografia, pesem os vários hiatos de desconhecimento, sobretudo nos anos de formação, permite já um seguir de modo suficiente os passos da figura. Nasceu em Guimarães, na nobreza rural ligada aos Prados, senhores de Farelões, serviu no condado de Barcelos, trabalhou para os Duques de Bragança em Vila Viçosa e esteve ao serviço de D. Teodósio II como cavaleiro da sua casa, viveu em Almada ligado a círculos da corte, foi pintor, iluminador, calígrafo e cavaleiro fidalgo e era considerado na sua época, segundo nos diz o padre lóio Jorge de São Paulo, «homem de admiravel pincel na arte da pintura» [15].  A sua obra identificada [16], tanto de iluminura (Compromisso da Irmandade das Almas da igreja de São Julião de Setúbal, de 1569-1571, na Biblioteca Municipal de Setúbal), como de fresco (Paço Ducal e igreja de Santo António de Vila Viçosa, c. 1580-1590) e de cavalete (tábuas do retábulo da Misericórdia de Almada, 1590), confirma esse qualificativo. Foi nome relevante da geração de Luís de Camões e dos pintores Campelo e Venegas, do iluminador António Fernandes, do tratadista Francisco de Holanda, e relacionou-se com o cronista Francisco de Andrada, com o famoso escritor viajeiro Fernão Mendes Pinto, e com Manuel de Sousa Coutinho, o célebre Frei Luís de Sousa -- o que atesta personalidade culta com sólida educação italianizante e neoplatónica. Em 1569 desenha as iluminuras do Compromisso da Irmandade das Almas de São Julião de Setúbal (Biblioteca Municipal de Setúbal), que tinham sido mal atribuídas a Francisco de Holanda [17]. Em 1581 estava estabelecido em Almada, morava no convento domínico de São Paulo e trabalhou para o teólogo D. Francisco Foreiro, antes de se relacionar com o cronista Francisco de Andrada, em cujas casas passou a morar, e com D. Manuel de Sousa Coutinho, que lhe abre as portas da Misericórdia. Pinta em 1584 a Bandeira da Misericórdia, é confirmado em 1585 cavaleiro da Casa de Bragança, recebe subsídio para sustento da moradia em Vila Viçosa, pinta os frescos da igreja de Santo António na vila ducal, desloca-se a Braga em 1589 a pintar retábulos no mosteiro de Vilar de Frades, pinta em 1590 as seis tábuas do retábulo da igreja da Misericórdia de Almada, e morre nesta vila em 4 de Junho de 1592. A viúva não ficou abonada: em Junho de 1604, Catarina Nunes nomeia procurador para receber de uma confraria de Montemor-o-Novo certa dívida (acaso uma obra do marido), sendo testemunha o filho do casal, o moço Luís do Prado, então criado de D. Francisco da Câmara..

     Vai-se apurando, enfim, a responsabilidade de Giraldo Fernandes de Prado em revestimentos a stucco e esgrafito maneiristas (caso de uma capela centralizada no Paço de Vila Viçosa e do tecto da capela-mor da matriz do Crato), aspecto que merecerá análise circunscrita noutro lugar mas que deve ser aqui referenciado por se relacionar com certos aspectos da caligrafia, pelo recurso a gramáticas ornamentais alfabetiformes. Além das seis tábuas da Misericórdia de Almada (que aguardam urgente restauro), Giraldo deixou também três outras pinturas no altar de Nossa Senhora da Luz da Sé de Portalegre, uma delas, a Anunciação, muito similar à de Almada com o mesmo tema, e de excelente desenho. No Paço de Vila Viçosa há frescos seus na câmara-oratório de D. Teodósio I, recém-restaurada, com seu rico programa de frescos e de stucco. Todas estas obras revelam a qualidade e o fino gosto italianizante do cavaleiro-pintor dos Braganças. Importa destacar aqui a faceta de pedagogo e calígrafo, como autor do Tratado de Letra Latina, que constitui o primeiro tratado português do género, composto em 1560-1561 e guardado no arquivo Columbia University, Rare Book & Manuscripts LIbrary, de New York (Cód. Plimpton, MS 297). Destinava-se ao ensino do filho de D. Teodósio I, D. João (1546-1583), conde de Barcelos (e futuro 6º Duque de Bragança, a partir de 1563), então com treze anos e prestes a assumir o cargo ducal dada a doença paterna. É grande o interesse histórico-artístico deste tratado e bem assim de outro manuscrito desse fundo (Manual para Copistas, Códice Plimpton, MS 296), ainda inédito [18], o que impõe não só um estudo integral com edição facsimilada, mas também a compreensão do seu papel numa nova política humanística de ensino das artes e letras no Portugal em tempo de regência de D. Catarina. O códice elogia a letra canceleresca à luz do humanismo cristão de Luca Pacioli (De Divina Proportione Veneza), Geoffrey Tory (Champ Fleury) [19] e Aldo Manucio (De Aeta de Pietro Bembo) e a forma geométrica do alfabeto na grelha quadrada (relação 1:9), mostrando um fundo conhecimento de tais tratados [20]. Um deles, o Champ Fleury, era do conhecimento de Francisco de Holanda, que possuía um exemplar [21], o que aliás explica as referências literárias e os círculos em que se movia Giraldo. Nestes círculos aristocráticos de poetas, pintores e calígrafos em que gravitou o poeta Luís de Camões, merece referência, a propósito, outro manuscrito iluminado, o Livro das Sentenças para a Ensinança e Doutrina do Principe D. Sebastião (Biblioteca D. Manuel II, Palácio de Vila Viçosa), obra de cerca de 1554 que reúne sentenças latinas traduzidas e compiladas pelo comerciante André Rodrigues de Évora (como demonstrou Luís de Matos) e é ornado com iluminuras maneiristas da autoria de António Fernandes (como provou Sylvie Deswarte) [22]. Destinava-se a educar o príncipe e futuro rei D. Sebastião com os preceitos pedagógicos vigentes. Não se tratando de um manual de caligrafia, esse livro reúne em si os principais valores da pedagogia, da moral e da cultura cortesã do Humanismo cristão de meados de Quinhentos, precisamente os mesmos valores da cultura de Camões (e de Francisco de Holanda, e dos outros artistas e autores aqui citados), onde não faltam as citações all’antico, as inscrições epigráficas clássicas, a representação do guerreiro porta-estandarte, e outras alusões a uma gramática italianizante.

     O Tratado de Letra Latina, embora não tivesse sido publicado (por razões obscuras), constitui testemunho valioso da arte da Caligrafia portuguesa, e o seu primeiro manifesto. Mostra a evolução da prática do ensino nos círculos de poder [23], uma arte a merece ser vista como sub-domínio no contexto da História da Arte do Renascimento. Tema de reflexão do humanismo, de Erasmo a Juan Luís Vives e João de Barros, preocupava-se com a educação dos jovens da nobreza, os filhos-família a quem se destinavam lugares nas esferas do Estado, razão acrescida para lhes fornecer bases de caligrafia harmoniosa segundo os valores do humanismo cristão e da doutrina neoplatónica. Os primeiros calígrafos portugueses de que se tem registo foram Frei Heliodoro de Paiva, filho do estadista Bartolomeu de Paiva e monge da livraria de Santa Cruz de Coimbra, falecido em 1552, e João de Barros, que em 1539 deu à estampa uma Grammatica da Lingoa Portugueza. Quanto ao primeiro, porém, não resta obra, e o livro de Barros, embora incluindo xilogravuras com letras acompanhando a cartilha, não é propriamente um manual de caligrafia. O ensino dos filhos da nobreza foi prioridade na escala de investimentos da Dinastia de Avis: Clenardo, ao chegar em 1535 a Évora com a corte, destacava o florescimento dos estudos dos príncipes, bom augúrio para a projecção do Reino português. A infanta D. Maria de Portugal (1538-77), princesa de Parma e Plasência, filha de D. Isabel de Bragança e do Infante D. Duarte, quando casou com Alessandro Farnese, Duque de Parma, fazia alarde de uma esmerada educação em letras, Matemática (por Domingos Peres) e conhecimentos de astrologia, filosofia e língua grega [24]. Estas matérias eram ensinadas no Paço de Vila Viçosa nos anos dourados dos Duques D. Teodósio I, D. João I e D. Teodósio II (este último, pai do futuro rei D. João IV), com suas animadas cortes literárias e visitas de embaixadas ilustres. Campo nobilitante, a arte da Caligrafia cresceu no seio dessas paredes e não admira que Giraldo de Prado e Manuel Barata [25], calígrafos de primeiríssima linha, fossem cavaleiros-funcionários da casa brigantina. O facto de se tratar de uma actividade algo descurada nos estudos dos historiadores de arte, como se o seu desenvolvimento se situasse à margem da prática artística e não no plano mais fundo da sua essência, impõe que se destaque a presença dos tratados de caligrafia nos círculos quinhentistas nacionais. Tudo começa no século XV e com a introdução da tipografia: os humanistas do Norte de Itália, de modo progressista, aspiram a ver impressas as suas obras com tipos desenhados a régua e compasso e uma harmonia assente em ‘proporções ideais’ aptas a reflectir a dignitas, a liberalitas e a virtú dos homens. Os primeiros tipógrafos italianos usam as belas letras romanas, moldam os tipos de chumbo com formas derivadas de construções geométricas, seguindo os padrões dos humanistas. O modo geométrico foi o processo ideal seguido, e a Caligrafia adequou-se às ‘proporções ideais’: desenham-se de more geometrico caracteres que reflectem o antropocentismo e as belas proporções à luz dos princípios matemático-lógicos. Para os scriptores e calígrafos italianos, a famosa inscrição da lápide gravada na base da Coluna de Trajano por Apolodoro de Damasco foi fonte inspiradora dos calígrafos, que viam nessas letras latinas a legitimação do rigor, beleza e legibilidade que pretendiam recuperar na arte de escrever. O interesse pela epigrafia greco-romana e os estudos das proporções ideais (‘divinas’) do corpo em Leonardo da Vinci e Albrecht Durer, levam à edição de tratados sobre a estética das letras versais romanas: comum a todos é a inserção das letras no quadrado, a forma geométrica considerada pura. A qualificação da Caligrafia como verdadeira arte do Humanismo, apta a destacar valências estéticas e morais, vai ter, assim, boa fortuna nos séculos seguintes, dando corpo às diversificadas formas de escrita, em nome da harmonia, ordem e sentido ontológico do mundo..   Quando Aldo Manuccio discorreu sobre a forma geométrica das letras segundo a grelha quadrada (relação 1:9) e fez elogio da letra canceleresca (letra humanística), estava consumada a ruptura com os scriptores medievais, que traçavam as letras à medida do olho, seguindo os cânones da ortodoxia monástica, enquanto que os calígrafos da Renascença reivindicam uma qualidade estética superior, em nome do antigo, usando a régua e o compasso para construir as letras. Para estes humanistas, a perfeição das artes baseava-se na perspectiva e na ciência das proporções numéricas e traduzia-se em figuras geométricas (corte áureo). Estadistas, filósofos, cientistas, poetas, matemáticos, arquitectos, artistas, recriam o pensamento dos filósofos greco-romanos, pesquisam os ideais estéticos, rejeitam a letra gótica (vista como «bárbara») e recriam o uso da letra romana. Esta época de ouro da Caligrafia inclui livros famosos: Geoffroy Tory (Champ Fleury, Paris, 1524), Luca Pacioli (Summa di Arithmetica Geometria Proportione e Proportionalita, 1494), Aldo Manuccio (ed. De Aeta de Pietro Bembo, 1495), Ugo da Carpi (Thesauro de scrittori de 1535), Ludovico Arrighi Vicentino (La Operina, 1522, e Il modo de Temperare le Penne, 1525), Giovantonio Andrea Tagliente (La vera arte de lo Excellente scrivere de diverse varie sorti di Litere, Veneza, 1524), Giovanbattista Palatino (Libro nuovo d'imparare a scrivere Tutte Sorte Lettere antiche et moderne di tutte nationi, con nuove regole, misure et essempi, Roma, 1540, e Compendio del gran volume, 1566), e outros calígrafos italianos, e Gerardus Mercator (Literarum Latinarum, quas Italicas cursoriasque vocant, scribendarum ratio, 1540), Juan de Yçiar (Arte Subtilissima por la qual se enseña a escrevir perfectamente, Zaragoza, 1546, com várias edições), e Georg Bocskay, calígrafo e secretário do Imperador Fernando I (Mira Calligraphicae Monumenta, 1561-62), obras patentes, em parte, nas nossas bibliotecas e que constituíam uma fonte revigorante. Um dos mais populares era o de G. A. Tagliente (1468-1527), mestre-calígrafo de Veneza que cria a letra ‘Bembo’, La vera arte de lo Excellente scrivere de diverse varie sorti di Litere, obra que aprofunda o modo simples de Arrighi, ao propôr letras floreadas a que chamou cancelleresca pendente (quase ilegível), como a letra Trattizata, a Bollatica e a Imperiale. Das letras itálicas leva a palma a lettera cancelleresca (já em uso nas chancelarias das cidades-estado de Roma a Veneza, Florença, Siena, Milão, Pádua). Em outro livro (1531), Tagliente defende a arte da Caligrafia à luz da razão geométrica com propósito de educar o público: con la presente opera ognuno le potra imparare impochi giorni per lo amaistramento, ragione & essempi, como qui seguente vedrai. Também Ugo da Carpi (Thesauro de scrittori, 1535, junto à obra de Sigismondo Fanti Liber elementorum theorica et practica, Veneza, 1514) seguiu nessa linha, compondo uma gravura com os utensílios indispensáveis à boa prática da arte da Caligrafia, depois utilizada no tratado de Palatino e também no de Giraldo em 1560: nesse fólio do tratado do artista-pedagogo português, vemos representadas, segundo uma ordem precisa e estruturada, as penas, o papel, os tinteiros, a régua e o esquadro, a ampulheta (relógio de areia), a palmatória [26], bem como a cruz do Calvário e a caveira que simboliza as vãs mundanidades. Antes de aparecer nos prelos o livro de Manuel Barata (edições de 1590 e 1592), a arte da Caligrafia era já patrocinada pela Corte dos Braganças, como atesta o tratado de 1560, obra onde são inúmeros os preciosismos de referenciação e as anotações humanísticas em que se baseava o ensino do príncipe, com defesa do bom desenho das letras segundo preceitos geométricos, com fartura de processos mnemónicos recorrendo a exemplos através de representações da fauna e da flora, com ‘citações’ religiosas num contexto já objectivamente contra-reformado, e com textos em defesa da virtú e da ideia, bem sintetizados no fólio de abertura onde, numa cartela maneirista, se representam as mãos que criam e desenham o mundo, como sinónimo maior dos princípios da liberalidade artística entendida como cosa mentale.  

     O códice Tratado da Letra Latina por Giraldo de Prado (1560-1561) é, assim, o mais antigo testemunho da arte da Caligrafia na cultura portuguesa. O autor antecede em doze anos, pelo menos, o manual de Manuel Barata (a crer na existência da presumida edição de 1572) [27], mostra sólida cultura humanística, revela domínio da Geometria e Perspectiva, o gosto pela decoração de grotesco que já perpassa nas suas pinturas a fresco, e uma cultura de tratadística com acento neoplatónico. Os 51 fls. mostram originalidade, ainda que com ‘citações’ de outros fls. Sacados dos livros de Içiar, de Palatino e de Tagliente: p. ex., o fólio que representa objectos de calígrafo inspira-se num fólio de Sigismondo Fanti, Thesauro de scrittori (1535), mas ignora-se se alguma edição deste livro existia nas bibliotecas portuguesas ao tempo do Tratado de Letra Latina. Também é de referir a 5ª edição do Libro Subtilíssimo por el qual se ensenã a escrevir y contar perfectamente (Ortographia Practica) do biscaínho Juan de Içiar, que Giraldo utilizou no seu tratado: ele conhecia a 5ª edição de 1559 e nela se inspirou para a sequência de letras cancelerescas e os tipos de seis fólios do seu Tratado de Caligrafia, similares aos de Içiar e prova cabal de que compulsou um exemplar dessa edição, que será o que hoje se integra na Biblioteca Pública de Braga (era da livraria do Arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires) e que inclui, no final, um desenho colorido ao estilo de Giraldo, o que indica que foi esse mesmo exemplar de que o português se serviu !  As afinidades dos desenhos de Giraldo são também flagrantes – neste caso, revelando o fenónemo oposto, o da sua reutilização por outrem -- quando cotejadas com os que ilustram o livrinho Exemplares de Diversas Sortes de Letras tirados da Polygraphia de Manuel Baratta, escriptor português, edição de João de Ocanha (Lisboa, tip. Alexandre de Sequeira, 1592). Deste livro restam pouquíssimos exemplares: da presumida edição de 1572, nenhum; da de 1590, quatro; cinco da edição de 1592, um dos quais integra a Biblioteca Pública de Braga [28]. A obra de Barata mereceu encómio por se considerar a primeira em que surgem «os originais de Letras abertas em chapa» e a excelente letra chancelerescaa, bastarda itálica e romana» [29]. Tal como na edição de 1590, também a de 1592 contém dezoito folhas com modelos caligráficos (chapas abertas em metal e madeira). Foi publicada postumamente, junto com duas outras obras reunidas numa só: Tratado de Arismetica com mvyta diligencia, de Gaspar Nicolás (Lisboa, ed. Germão Galharde, 1519), e Regras qve ensinam a maneira de screver a orthographia da lingva Portuguesa, de Pero de Magalhães de Gândavo. Não se sabe com que objectivo João de Ocanha, livreiro dos Braganças, propôs um compêndio de pedagogia com tais características: Barata morrera pouco antes; mas é certo que este calígrafo de renome, mestre do príncipe D. João, pai de D. Sebastião [30], e colega de Giraldo no corpo de funcionários de D. João I e D. Teodósio I em Vila Viçosa, conhecia o manuscrito hoje em New York, pois se serviu de muitos dos ‘tipos’ de letras para as suas próprias chapa. Não se sabe o que se passou para a desmemorização de que o tratado de Giraldo foi alvo: o artista morrera em 1592 nas casas de Almada e é nesse preciso momento que João de Ocanha reúne várias pranchas com letras cancelerescas de Barata e com faz editar um livrinho em que muitas das ideias e dos tipos de caligrafia são tomados, seguramente, do Tratado de Letra Latina escrito trinta e dois anos antes...  Estima-se, assim, que uma das matérias nobilitantes que recebeu maior estímulo da parte dos Bragança foi a Caligrafia, não admirando que tanto Giraldo Fernandes de Prado como Manuel Barata, calígrafos de primeiríssima linha, tivessem sido cavaleiros-funcionários da casa ducal e figuras prestigiadas nessa corte alternativa. O elogio de Luís de Camões no soneto que acompanha as edições de 1590 e 1592 (e que já poderia e deveria constar da de 1572, a ter mesmo sido publicada) é um sinceríssimo elogio às qualidades e possibilidades da arte da Caligrafia [31]. É certo, por tudo o que se disse, que os livros de Arrighi, Palatino, Ludovico Vicentino e António Tagliente, bem como o Champ Fleury, circulavam nas bibliotecas e círculos intelectuais de Évora, Lisboa e Vila Viçosa e foram bases para os tratados compostos por aqueles calígrafos portugueses.


[1] Léon HEBREU, Diálogos do Amor, ed. anotada de Giacinto MANUPELLA, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983.

[2] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, op. cit., pp. 344-355.

[3] Cf., sobre o tempo cultural de Camões, Dagoberto L. MARKL, Fernão Gomes, um pintor do tempo de Camões, Lisboa, 1972; Jorge Borges de MACEDO, Os Lusíadas e a História, Verbo, Lisboa, 1979; Sylvie DESWARTE, As Imagens das Idades do Mundo de Francisco de Holanda, Imp.Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 1987; e Vasco Graça MOURA e Vitor SERRÃO, Fernão Gomes e o Retrato de Camões, IN/CM, Lisboa, 1989.

[4] Cf. Vasco GRAÇA MOURA, Luís de Camões: Alguns Desafios, Quetzal, Lisboa, 1980, e id., Camões e a Divina Proporção, Lisboa, 1985. Temos exemplos picturais em Os Lusíadas, com afinidades pressentidas entre o episódio do globo transparente no canto X (estâncias 77 e 79) e a Alegoria do Marquês de Avalos, de Ticiano, como Vasco Graça Moura observou. Na épica camoneana, aliás, multiplicam-se referências pictóricas e alusões à ‘ideia’ neoplatónica da criação artística, como a descrição de um painel do Pentecostes (canto II, estância 11), de outro com Tritão pintado aos modos de Arcimboldo (canto VI, ests. 17-18), a descrição da entrada de Paulo da Gama no Catual, ou dos heróis pintados nas bandeiras de navio (canto VII, est. 74-78, e canto VIII).

[5] Cf. Leontina VENTURA (intr. e notas), Arte Poetica, e da Pintvra, e Symetria, com Principios da Perfpectiua. Composta por Philippe Nunes natural de Villa Real (1ª ed., of. Pedro Craesbeeck, Lisboa,1615), ed. Paisagem, Porto, 1982. Este tratado que é simultaneamente receituário teve uma 2ª edição em 1767 (Lisboa, Of. João Baptista Álvares). Conhece-se uma trad. de Zahira VELIZ  (ed.), Artists' Techniques in Golden Age Spain. Six treatises in translation, Cambridge, Cambridge University Press, 1986. Cf., ainda, António João CRUZ, “Pigmentos e corantes das obras de arte em Portugal, no início do século XVII, segundo o tratado de pintura de Filipe Nunes”, Conservar Património, nº 6, 2007, pp. 39-51.

[6] Cf. Joaquim Oliveira CAETANO, O que Janus Via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), tese de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996.

[7] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português dirigido por Pedro CALAFATE, vol. II (Renascimento e Contra-Reforma), ed. Caminho, Lisboa, 2001, pp. 337-384.

[8] Vitor SERRÃO, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Fundação da Casa de Bragança, 2008, cap. .

[9] O desaparecido manuscrito do tratado Vida de alguns pintores, esculptores, e architectos de Francisco de Sólis é vagamente referenciado na Collecção de Memorias de Cyrillo Volkmar Machado, de 1823,

[10] Cf. Luís de Moura SOBRAL, Elogio da Pintura de Luís Nunes Tinoco, I.P.P.C., Lisboa, 1991; e Poesia e Pintura na Época Barroca, Lisboa, Ed. Estampa, 1994.

[11] Cf. José Sebastião da SILVA DIAS, A política cultural da época de D. João III, tomo II, Coimbra, 1969, pp. 701-715.

[12] Da Pintura Antigua, ed. de Ángel González GARCÍA, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1984, refª Livro I, p. 26.

[13] Cf. textos do catálogo da exposição Casa Excelentíssima -- 500 Anos do Mosteiro da Madre de Deus, coord. de Alexandra CURVELO e Alexandre PAIS, Lisboa, Instituto dos Museus e Conservação, 2009, pp. 107-123.

[14] Cf. Vítor SERRÃO, «Lourenço de Salzedo en Roma. Influencias del Manierismo romano en la obra de la Reina Catarina de Portugal», Archivo Español de Arte, LXXVI, nº 303, 2003, pp. 249-265.

[15] Cf. Vitor SERRÃO, «Maniera, peinture murale et calligraphie: Giraldo Fernandes de Prado (c. 1535-1592), un grand peintre, écrivain et noble enlumineur méconnu», Out of the Stream: new perspectives in the study of Medieval and Early Modern mural painting, coord. de Luís U. Afonso e Vitor Serrão, Manchester, 2007, pp. 116-140, e idem, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Fundação da Casa de Bragança, 2008.

[16] Cf. Vitor SERRÃO, O Fresco Maneirista no Paço de Vila Viçosa, Parnaso dos Duques de Bragança, 1540-1640, Fundação da Casa de Bragança, 2008 (com a biografia actualizada e ‘corpus’ da obra de Giraldo).

[17] Sobre este Compromisso iluminado, cfr. Rafael de Faria MOREIRA, «Sobre Francisco d’Ollanda», revista Sintria, I-II, Sintra, 1982-83, pp. 642-643, onde se avança com uma atribuição das iluminuras a Francisco de Holanda, hipótese já infirmada em absoluto face às ulteriores identificações da obra de Giraldo de Prado.

[18] O manuscrito procede do denominado fundo Georg Plimpton: em 1798 estava em Mayence, em 1865 entra na posse do conde de Renessee Breidbach, em 1903 na de George Plimpton, cuja biblioteca é doada em 1932 ao actual arquivo. O tratado elogia a letra canceleresca à luz do humanismo cristão de Luca Pacioli (De Divina Proportione Veneza), Geoffrey Tory (Champ Fleury) e Aldo Manucio (De Aeta de P. Bembo) e a forma geométrica do alfabeto na grelha quadrada (relação 1:9). Tais tratados eram conhecidos de Francisco de Holanda e explicam as referências literárias em que se movia Giraldo. Embora não tivesse sido publicado (por razões obscuras), o tratado constitui testemunho valioso da Caligrafia portuguesa, e o seu primeiro manifesto. Em 1887-89, John William Bradley escreveu: «Giraldo de Prado. Calligrapher. s. XVI. Wrote at Lisbon, in 1560-1, a book of pictorial alphabets, with his signature frequently ocurring. Paper, 4to, 51 ff. The execution and ingenuity of design are said to be far superior to those of Palatino. Formerly in possession of Mr. Bragge, of Sheffield. Sold in 1876, at Sotheby's, Catalogue 23, n. 122» (John William BRADLEY, A Dictionary of miniaturists, illuminators, calligraphers, and copysts, with references to their works and notices of their patrons, from the establishment of Christianity to the eighteenth century, London, Bernard Quaritsch, 1887-89, vol. 1, p. 329).

[19] Cf. Paul-Marie GRINEVALD (éd.), Champ Fleury. Art et Science de la Vraie Proportion des Lettres Bibliothèque de l’Image, Paris, 1988.

[20] Cf. sobre esta matéria, por exemplo, Fernando BOUZA ALVARES, Del escribano a la biblioteca. La civilización escrita europea en la alta Edad Moderna, Madrid, ed. Síntesis, 1992; e Paulo HEITLINGER, Tipografia: origens, formas e uso das letras, Dinalivro, Lisboa, 2006.

[21] Sylvie DESWARTE-ROSA, «Le Rameau d’Or et de Science. F. Ollandivs Apolini Dicavit», Pegasus, nº 7, 2005, pp. 9-47.

[22] Idem, «Sentenças para a Ensinança e Doutrina do Príncipe D. Sebastião», exp. A Pintura Maneirista em Portugal – arte no tempo de Camões, CNCDP, 1995, pp. 426-427.

[23] Sobre os modelos, práticas e representações da educação dos príncipes, cf. o excelente trabalho de Ana Isabel BUESCU, Na Corte dos Reis de Portugal. Saberes, Ritos e Memórias. Estudos sobre o Século XVI, ed. Colibri, Lisboa, 2011, pp. 11-51.

[24] Pedro Vilas Boas TAVARES, «Domingos Peres: professor de matemática da Princesa Maria de Portugal, na fundação de um beatério bracarense», Actas do Congresso D. Maria de Portugal, Princesa de Parma (1565-1577) e o seu tempo. As relações culturais entre Portugal e Itália na segunda metade de Quinhentos, Porto, 1999, pp. 7-28.

[25] Ana Martínez PEREIRA, «El Arte de escrever de Manuel Barata en el ámbito pedagógico de la segunda mitad del siglo XVI», Península. Revista de Estúdios Ibéricos, nº 1, 2004, pp. 235-249.

[26] A palmatória de marfim, sem azorragues, era recomendada no ensino das letras dos filhos-família e considerada muito eficaz como método de ensino, lembrando a esse propósito Ana Isabel BUESCU, op. cit., p. 33, como o Mestre da Ordem de Santiago, D. Jorge, reconhecia, já homem feito, terem sido benéficos na sua formação os açoites que recebera do seu mestrre, grande humanista Cataldo Sículo.

[27] Ana Martínez PEREIRA, «El Arte de escrever de Manuel Barata en el âmbito pedagógico de la segunda mitad del siglo XVI», Península. Revista de Estúdios Ibéricos, nº 1, 2004, pp. 235-249.

[28] Existe recente ed. facsimilada do livro Exemplares de Diversas Sortes de Letras tirados da Polygraphia de Manuel Baratta, escriptor português (a edição custeada por João de Ocanha, livreiro do Duque de Bragança D. Teodósio II, saída em Lisboa, tip. de Alexandre de Sequeira, 1592), da responsabilidade do Centro de Estudos Lusíadas da Universidade do Minho, com estudo de Ana Lúcia DUQUE, Braga, 2009.

[29] Cit. em Diogo Barbosa MACHADO, Bibliotheca Lusitana, Lisboa, 1741-1759, vol. III, pp. 190-1901.

[30]  Idem, ibidem.

[31] «Ditosa pena, como a mão que a guia, / Com tantas perfeyçõens da sutil Arte, / Que quãdo com razão venho a louvarte, / Em teus louvores perco a fantasia. / Porém Amor, que effeitos vários cria, / De ti cantar me manda em toda parte, / Não em plectro belígero de Marte, / Mas em suave & branda melodia. / Teu nome Emmanuel, de hum noutro Pólo, / Voando se levanta, & te pregoa, / Agora que ninguém te levantava. / E porque immortal sejas; eys Apolo / Te offerece de flores a Coroa  /Que já de longo tempo te guardava».