Lisboa, cidade global no Renascimento.

26 Setembro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão


LISBOA, 'UMBILICUS MUNDI' : IMAGENS DE LISBOA NA PINTURA DOS SÉCULOS XVI E XVII, ‘ÉPOCA DE OURO’ DA CULTURA  ARTÍSTICA PORTUGUESA.

A Lisboa do século XVI tendeu a abandonar a imagem de cidade medieval, o seu urbanismo sinuoso ao longo de sete colinas e oseu carácter desalinhado, e assume-se como uma grandiosa metrópole da pimenta, uma rota comercial onde acorrem povos de todas as origens. Segundo a saudosa olisipógrafa Dra Irisalva Moita (Lisboa Quinhentista, CML, 1983), a multidão da «nações» concentrada na zona portuária (na Praça do Pelourinho e na Ribeira Velha) incluía «flamengos, castelhanos, galegos, andaluzes, alemães, florentinos, genoveses empregados nas artes da marinharia, nas operações cambiais e nos ofícios mecânicos, a par de escravos africanos, berberes, índios de diversas origens, e muitos indigentes»…

… «uma mancha exótica constituída por negros da Guiné, semi-nus, andrajosos, índios, chineses, berberescos, lado a lado com regateiras brigonas e marítimos de linguagem afiada labutando em promiscuidade na zona da Ribeira das Naus, nas fundições, enfarruscados na fuligem das bigornas, o que dava ao local um aspecto de paisagem do outro mundo ou antro de Vulcano, como já a classificara Jerónimo Munzer no seu Itinerario de 1494». Esta capital mercantil que se abre a colónias de estrangeiros, que abandona o velho facies medievalizante e começa a assumir novas dinâmicas de desenvolvimento, respira vida e não deixa indiferentes quem regularmente a visita e a descreve em cores exóticas. Os relatos de Francesco di Marchi (Narratione Particolare, de 1566), de Giovan Battista Venturino (Viaggio del Cardinal Alessandrino, de 1571) e do padre jesuíta Duarte de Sande (Diário,  de 1584), entre muitos outros, dão conta de uma Lisboa cheia de colorido e de carácter cosmopolita que no reinado de D. Sebastião chega a atingir cerca de 150 mil habitantes. A Lisboa do século XVI assimila uma imagem de cidade medieval com o seu urbanismo sinuoso ao longo das sete colinas e um carácter desalinhado, e de uma cidade que se miscigena, à imagem de metrópole da pimenta e rota comercial onde acorrem povos de todas as origens. 

No século XVI, a Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa, era uma pequena babel. Aí moravam italianos, flamengos, andaluzes, portugueses, cristãos-novos, judeus estrangeiros, escravos vindos de vinte nações africanas, e escravos árabes. Faziam-se trocas comerciais. Esta realidade é trazida pelo livro The global city. On the streets of the Renaissance Lisbon (A Cidade Global . Nas Ruas da Lisboa Renascentista), obra das historiadoras Annemarie Jordan Gschwend, do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, e Kate Lowe, da Universidade Queen Mary de Londres. A obra estuda dois quadros descobertos em 2009 numa mansão inglesa em Oxfordshire, de cª 1570-1620, obra de artista holandês. Vemos mais de uma centena de figuras que conversam, montam a cavalo, numa rua com uma fileira de edifícios. Há homens, mulheres, negros, brancos, cavalos, movimento e vestes apropriadas ao Outono ou ao Inverno. Lisboa tinha uma vasta população negra. O quadro mostra também os estrangeiros que ajudaram Lisboa a tornar-se uma grande cidade comercial. Também se mostram animais, um cão que abocanha uma ave, e um peru, ave que veio da América e que os portugueses tornaram numa ave global, levando-a para a Índia e outras partes do mundo. A  Rua Nova dos Mercadores media 286 m de comprido e 8,8 de altura, e ficava atrás do que hoje é o Terreiro do Paço, entre o início da Rua do Ouro e a dos Fanqueiros, onde hoje é a Rua do Comércio; vê-se é a fileira de edifícios que estão do lado do Tejo. Atrás destes, a Rua da Confeitaria e mais atrás o Terreiro do Paço e o Tejo. À esquerda vê-se o largo do Pelourinho Velho. Quarenta e cinco edifícios distribuíam-se de cada lado, com ocupação múltipla e três a seis andares. A cerca de ferro dava nome à Rua Nova dos Ferros, parte oriental da Rua Nova dos Mercadores. Dentro desta cerca, os comerciantes, lojistas e banqueiros tinham espaço semiprivado para conduzirem negócios. O artista mostra a interacção social que testemunhou – a concentração de mercadores ricos vestidos ao estilo espanhol com capas pretas, separados dos habitantes que ficam fora da cerca.

Os precursores da Olisipografia são o fidalgo João Brandão (Tratado da Magestade, Grandeza e Abastança da Cidade de Lisboa, 1552), o padre Cristóvão Rodrigues de Oliveira (Summario, em que se contem algumas cousas assim ecclesiasticas, como seculares, que ha na cidade de Lisboa, 1554),  o humanista Damião de Góis (Urbis Olisiponis descriptio, Évora, 1554) e o arquitecto Francisco de Holanda (Da Fabrica que Faleçe à Cidade de Lixboa, 1571); que reúnem o mais fidedigno que se escreveu sobre as vivências da capital portuguesa nesses «anos dourados» do século XVI.

Não há que esquecer a literatura de viagens, onde surgem páginas de colorida descrição de Lisboa em Francesco di Marchi (Narratione Particolare, 1566) e Giovan Battista Venturino (Viaggio del Cardinal Alessandrino, 1571), entre outros, e a Primeira Parte das Antiguidades da Mui Nobre Cidade de Lisboa, por António Coelho Gasco (1619) e o Livro da Grandeza de Lisboa de Frei Nicolau de Oliveira (1620) e ainda a informação memorialística de Pedro Rodrigues Soares, um autor sebastianista que registou as vivências da cidade entre 1565 e 1628, deixando longo testemunho dos tempos anteriores à crise dinástica.

É o cruzamento do testemunho da Olisipografia com as imagens em pinturas, desenhos, iluminuras e gravuras, e o que remanesce da antiga Lisboa em termos histórico-artísticos, que permite imaginar essa cidade cosmopolita, vista ao tempo como verdadeiro ‘umbilicus mundi’  pelo exotismo das gentes e a frenética actividade mercantil…No tempo de Damião de Góis, à data do seu livro Olisipo Urbis Descriptio, de 1554, a cidade mostrava sinais de modernidade a acompanhar essa marca de empório cosmopolita. A cidade des-medializava-se, surgiam novas zonas (o Bairro Alto, bairro por excelência de nobres, mareantes e artistas), e seguia (como bem notou Hélder Carita) segundo as novas dinâmicas abertas pelo almoxarife António Carneiro, que tornavam Lisboa uma grande urbe europeia, onde muitos estrangeiros se tinham fixado e os circuitos de mercado se revigoravam. A arte requintada e erudita do pintor régio de D. João III tem boa expressão nos fundos pintados com arquitectura clássica, onde Gregório Lopes se deleita a tratar (ao gosto da construção renascentista como a de João de Castilho) as logge, balcões, varandas, arcadas e galerias de colunas de ordem jónica ou coríntia, que entretanto se iam imiscuindo no gosto da obra pública e privada da Lisboa joanina, centro cosmopolita por excelência.