Teoria e Artes da Contra-Reforma: o Maneirismo reformado em Portugal.

2 Dezembro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

A tratadística sobre a arte da Pintura em Portugal nos séculos XVI e XVII não abunda de protagonistas e de textos verdadeiramente significativos. Salvo os escritos de Francisco de Holanda e Félix da Costa Meesen, não dispomos de uma produção original de testemunhos estéticos sobre a essência dessa arte, para além do que marginalmente integra os receituários e os manuais práticos de trabalho de pintores, iluminadores e desenhadores [1].  Se é verdade que circulavam e eram lidos os exemplares da mais relevante tratadística italiana, castelhana, flamenga e francesa sobre Arquitectura e sobre Pintura, o que se verifica é que, à dimensão interna do país, pouco de original se escreveu que não fossem traduções ou reapropriações de ideias prevalecentes. Entre 1548, data em que o pintor e arquitecto Francisco de Holanda, regressado de Roma, escreve o seu famoso tratado Da Pintura Antigua (onde põe a tónica do discurso na scintilla divina e no primado do disegno) [2] e 1696, ano em que o pintor, escritor e poeta sebastianista Félix da Costa Meesen redige a Antiguidade da Arte da Pintura (espécie de elogio da liberalidade das artes e de memória sobre a nossa produção pictórica considerada digna de registo) [3], mal se pressente na produção literária nacional um ardor de teorização que permita falar-se de um corpo autonomizado de textos e compará-lo a outras situações da Europa coeva.

     Não sobressai no nosso panorama livresco desse arco cronológico, de facto, mais que o sopro de um adiado debate de ideias estéticas e parangonais que certamente animava a vida das tertúlias de literati que a conjuntura cultura destes tempos de mudança e crise, com a Europa cristã dramaticamente estremada em campos opostos e hostis, incrementava em determinados círculos humanísticos. Nas ‘cortes de aldeia’ de André de Resende em Évora, de D. João de Castro no locus amoenus da Penha Verde (Sintra), de D. Miguel da Silva na quinta do Fontelo (Viseu), ou dos Duques de Bragança à sombra do Paço de Vila Viçosa, decorriam debates das humanae litterae onde, além dos saraus de poesia, da leitura dos textos clássicos, do debate sobre as questões metafísicas, o estudo do all’antico, das ciências do primado das antigualhas, se discutiam também, marginalmente embora, o legado de Vitrúvio e de Alberti, o classicismo, o ideal de beleza, a essência das artes e a liberalidade da sua prática [4].  Apesar de neste tempo artístico crescentemente pautado pela influência do Maneirismo italiano se encontrar em Portugal uma literatura que estava disponível para enfrentar essas questões, tais debates não impulsionaram uma intervenção teórica digna desse nome e são efectivamente residuais (como sucede com João de Barros em 1532 ao definir as «categorias» da Pintura na sua Ropica Pnefma (Mercadoria Espiritual), sintetizando um panorama onde «cada hum segue e obra o natural da sua condição e ingenho, uns imitando a natureza e outros a fantesia sem ordem», ou com Francisco de Monzón ao reflectir sobre a «ideia» das artes no Espejo del Perfecto Príncipe Christiano, autores a este propósito lembrados por Joaquim de Oliveira Caetano [5]) as referências à concepção das artes, ao valor pedagógico das imagens (antes de Trento, ou já em contexto tridentino), ao poder da ars memoriae, à carga emotiva do discurso plástico ou ao seu grau de intervenção social e espiritual. 


     Defesa da liberalidade e assunção da ideia como verdadeira inteligência.

     Dir-se-á que o debate em torno da dignitas, da liberatità, da virtù artística, que sabemos ter sido intenso e vivido de modo empolgado pelos protagonistas desse tempo, com olhos postos nos exemplos da Itália do Renascimento, se restringiu aos argumentos em defesa de um novo estatuto artístico, que ocupou os interesses maiores de pintores e dos seus mecenas durante a segunda metade do século XVI e ao longo do século seguinte. O reconhecimento da liberalità, reivindicado com sucesso na célebre carta que em 1577 foi dirigida a D. Sebastião pelo pintor Diogo Teixeira, a que se seguiram outras petições mais ou menos moldadas nos argumentos daquela e igualmente vitoriosas, constituiu a essência dessa espécie de ‘literatura de protesto’, digamos assim, em que os artistas de maior consideração buscaram no tratadismo italiano e castelhano bons argumentos para sedimentar a sua luta junto das autoridades [6]… A busca de um estatuto de dignificação laboral consumiu os interesses da nova geração de artistas portugueses da segunda metade do século XVI, fascinados pelo exemplo romano, e abundam, por isso, os argumentos em prol da liberalidade em cartas, petições, contratos de trabalho e intervenções académicas, onde se destaca a antichità da Pintura, a sua origem divina, a sua utilização por príncipes e reis da Antiguidade (seguindo o anedotário de Plínio o Velho), e a sua qualidade de mimésis (ut pictura poesis) como imitação da natureza (seguindo, embora com conhecimento menos profundo, a doutrina dos tratados de Giorgio Vasari, as célebres Vite de 1550, reeditadas em 1568, de Federico Zuccaro, L'idea de' Pittori, Scultori, ed Architetti, de 1607, e de Giovan Paolo Lomazzo, Idea del tempio della pittura de 1590, por exemplo) [7].

     Rareiam entre nós, entretanto, reflexões mais profundas sobre a essência da criação artística (salvo na produção de filósofos como Frei Heitor Pinto no famoso livro Imagem da Vida Cristã, seguindo bases aristotélicas), que em palcos coetâneos como Itália e Castela conduzia, nos mesmos anos, à elaboração de teorias globalizantes sobre a ideia motriz das artes e sobre uma ordem estética e ordenadora do mundo [8]. Como sintetizava em 1577 o grande humanista Benito Arias Montano (1527-1598) num poema em louvor da Pintura que compôs em Roma (onde preparava a edição da Bíblia Poliglota buscando autorizações junto do Papado) para acompanhar um desenho de Federico Zuccaro passado à estampa por Cornelis Cort, a arte deveria ser avalizada como o «verdadeiro remédio para os males da humanidade» [9].  Nesse contributo de ideias e escolhas para a sedimentação de uma Teoria da Arte (onde não é nunca de negligenciar a influência de Frei Luís de Léon), é a defesa da harmonia, do rigor doutrinário e, também, a carga pedagógica e a força da emotividade nas representações artísticas, em nome de uma concepção neoplatónica da criação, que se impõem como valência estética. Quando se admira essa estampa A verdadeira Inteligência inspira o Pintor (Staatlische Museum, Berlim), gravada por Cornelis Cort segundo desenho de Frederico Zuccarro, e o poema latino de Arias Montano que a acompanha, vemos um discurso sobre o papel da pedagogia, da emoção e da beleza ideal aliada à alegoria clássica e aos conceitos neoplatónicos: Apolo como Ideia motriz das Artes, a Fraga de Vulcano no ‘quadro dentro do quadro’, as Fúrias, a Inveja, e o Concílio dos Deuses num Olimpo onde a Caritas, Prudentia, Benignitas e Fortituto têm valência qualificante. É toda uma síntese da estética do Humanismo cristão aplicada ao sentido profundo das artes.

     É de supor que Francisco de Holanda, no perdido poema Louvores eternos, de 1569, fizesse, também ele, o elogio das artes a partir de uma espécie de Anjo da Inspiração Divina, que alimenta o talento inato dos artistas numa dimensão de cosa mentale onde ele se mostra, aliás, precursor das posições teóricas de Arias Montano e do próprio Federico Zuccaro (que no mosteiro do Escurial pintaria, um pouco mais tarde, o quadro São Jerónimo no seu gabinete de trabalho, onde o santo é inspirado por um anjo da guarda etéreo e quase incorpóreo, em cuja representação sequencia a leitura dos conceito holandiano de ideia, defendido no tratado Da Pintura Antigua) [10]. Todavia, faltam-nos o conhecimento directo desse e de outros textos de Holanda (por alguma razão não publicados à época, fosse desinteresse de editor, falta de mecenas ou desinvestimento dos poderes), como é o caso do tratado Do Tirar Polo Natural, dedicado à arte do Retrato [11], e o mesmo sucede com o manuscrito de Francisco de Sólis com as biografias de vários artistas portugueses, bem como outros de que existe fugaz menção mas se encontram perdidos (ou inlocalizados em fundos de arquivo), facto que depaupera em extremo um trabalho de reconstituição da tratadística das artes em Portugal durante a Idade Moderna. Sob esse ponto de vista, a influência, quer do tratado de Francisco de Holanda nos círculos cortesãos de meados do século XVI, quer do de Félix da Costa Meesen ao empreender em tempo de D. Pedro II o sonho de criar em Lisboa uma Academia artística segundo o modelo da de Charles Le Brun em Paris, foi muito restrita. As iniciativas culturais destes dois artistas-escritores foram votadas ao fracasso, o que tem, aliás, expressão na nostalgia das suas próprias palavras: o primeiro, ao dizer ao dizer que teve a primazia no louvor da Antiguidade («fui… o primeiro que n’este Reyno louvei e apregoei ser prefeita a antiguidade, e não haver outro primor nas obras, e isto em tempo que todos quasi querião zombar d’isso», mas ao regressar de Itália «não conhecia esta terra, como quer que não achei pedreiro nem pintor que não dixesse que o antigo (a que eles chamão modo de Itália) que esse levava a tudo; e achei-os todos tão senhores d’isso, que não ficou nenhuma lembrança de mi»), o segundo, espécie de Van Mander português e «estrangeirado» roído pela amargura por viver numa Lisboa em «tempo de mingoante da Pintura» e pelo desinteresse da corte em aceitar as suas ideias temperadas pelo conhecimento directo que trazia de Londres, Paris, Madrid e Roma. A Antiguidade da Arte da Pintura (manuscrito de 1696, na Universidade de Yale) não esconde a influência directa dos escritos de Vicente Carducho e de Gaspar Gutiérrez de los Ríos [12], senão também a de Giovanpietro Bellori, o tratadista do bel composto, mas regista menos um alinhamento com a cultura do Barroco internacional e mais uma admiração sincera pelos pintores do Maneirismo, de que destaca os portugueses Campelo, Gaspar Dias, Francisco Venegas e Diogo Teixeira. Escrito de seguida à longa crise em que as guerras da Restauração portuguesa contra Castela tinham mergulhado o país, o tratado de Meesen mostra uma admiração pela Bella Maniera oposta ao desprezo que nutria pelos pintores do seu tempo, o que certamente seria matéria polémica e de acesas inimizades nos círculos em que se movia…

     De facto, nem os dois referidos tratados tiveram recepção suficientemente calorosa por parte dos públicos nacionais para serem lidos fora de uma restritíssima teia de pessoas, nem merecerem ser publicados no seu tempo – e o facto é que o não foram, pese a tentativa, igualmente votada ao malogro, em que se envolveu Manuel Denis, pintor português ao serviço da Princesa D. Juana, mãe de D. Sebastião, ao traduzir para castelhano o manuscrito da obra Da Pintura Antigua, esforço vão para o lançar à estampa no mercado espanhol [13]. O panorama da tratadística portuguesa dos séculos XVI e XVII sobre a Pintura e outros ramos artísticos foi, assim, muito minguado: salvo os casos excepcionais de Holanda e de Meesen, constata-se a falta de «uma inteira visão do mundo baseada nas novas artes, uma cosmovisão mental e imagética na qual as técnicas e preceitos passam a ser uma componente meramente secundária»


[1] Cf. Vítor SERRÃO, «’Acordar as cores…’ : os pigmentos nos contratos de pintura portuguesa dos séculos XVI e XVII», in actas do Congresso Internacional The Materials of the Image / As Matérias da Imagem, coord. de Luís Urbano Afonso (ed.), Série Monográfica «Alberto Benveniste», nº 3, ed. Cátedra de Estudos Sefardsitas Alberto Benveniste, Lisboa, 2011, pp. 97-132. Este estudo integra-se no projecto da F.C.T. As Matérias da Imagem. Os Pigmentos na Tratadística Portuguesa entre a Idade Média e 1800, POCI/EAT/58065/2004, e analisa os materiais utilizados no final da Idade Média e ao longo da Idade Moderna, a partir de referências contratuais, receitas, pagamentos, compras de tinta, cartas de mercadores envolvidos, etc, numa leitura de conjunto.

[2] Cf. os ensaios de Sylvie DESWARTE-ROSA, «Idea et le Temple de la Peinture. I. Michelangelo Buonarroti et Francisco de Holanda» Revue de l’Art, nº 92, 1991, pp. 20-41; idem, «Idea et le Temple de la Peinture.II. De Francisco de Holanda à Federico Zuccaro», Revue de l’Art, nº 94, 1992, pp. 45-65; idem, Ideias e Imagens em Portugal na época dos Descobrimentos, Difel, Lisboa, 1992; e idem, «Si dipinge col cervello et non con le mani. Italie et Flandres», Bolletino d’Arte – Supplemento, nº 100, 1997, pp. 277-294.

[3] Ed. fac-similada do manuscrito seiscentista da Yale University, com anotação crítica por George KUBLER, The Antiquity of the Art of Painting by Felix da Costa, New Haven, Yale University Press, 1967.

[4] Cf., sobre esse ambiente, Luís de MATOS, A corte literária dos Duques de Bragança no Renascimento (conferência proferida no Paço de Vila Viçosa em 15 de Outubro de 1955), Lisboa, Fundação da Casa de Bragança, 1956; e Sylvie DESWARTE, op. cit., Difel, 1992.

[5] Cf., sobre as referências artísticas nas obras desses autores, Joaquim de Oliveira CAETANO, O que Janus Via. Rumos e Cenários da Pintura Portuguesa (1535-1570), tese de Mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 1996 (não publicado); cf. também a edição da Ropica Pnefma, INIC, Lisboa, 1983, p. 77; I.S. RÉVAH, «Le colloque Ropica Pnefma de João de Barros, Bulletin Hispanique, LXIV, 1962; Maria Leonor Carvalhão BUESCU, Babel e a Ruptura do Signo, a gramática e os gramáticos portugueses do século XVI, Lisboa, 1984; António Alberto Banha de ANDRADE, João de Barros, historiador do pensamento humanista português de Quinhentos, Lisboa, 1980; Maria de Lurdes Correia FERNANDES, «Francisco de Monzón e a ‘princesa cristã’», Revista da Faculdade de Letras, Porto, 1993, pp. 109-121; e Carlota Fernández TRAVIESO, «La Erudición de Francisco de Monzón en ‘Libro Segundo del Espejo del Perfecto Príncipe Cristiano’», The Bulletin of Hispanic Studies, Vol. 87, nº 7, 2010, pp. 743-753.

[6] Vitor SERRÃO, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, Lisboa, 1983.

[7] Cf. sobre estas fontes básicas da teoria da arte do Maneirismo o clássico ensaio de Anthony BLUNT, Artistic Theory in Italy, 1450 to 1600, Oxford, 1940 (2ª ed., 1956).

[8] Adriana VERÍSSIMO SERRÃO, «Ideias Estéticas e Doutrinas da Arte nos Séculos XVI e XVII», História do Pensamento Filosófico Português dirigido por Pedro CALAFATE, vol. II (Renascimento e Contra-Reforma), ed. Caminho, Lisboa, 2001, pp. 337-384.

[9] Cf. Silvaine HANDEL, Benito Arias Montano. Humanismo y arte en España, trad., Univ. de Huelva, 1999; Juan Antonio RAMIREZ, Dios Arquitecto, Ediciones Siruela, Madrid, 1995; Juan GIL, Arias Montano En Su Entorno (Bienes Y Herederos), ed. Regional Extremadura, Sevilla, 1998, e Vitor SERRÃO, «As ideias estéticas de Benito Arias Montano e a arte portuguesa do tempo dos Filipes», Actas do Congresso Portugal na Monarquia Espanhola – Dinâmicas de integração e de conflito (FCSH e Instituto Cervantes, Lisboa, 26-28 de Novembro de 2009) (no prelo).

[10] Sylvie DESWARTE-ROSA, «Aprender a desenhar em Roma no século XVI», cat. da exp. Facciate Dipinte. Desenhos do Palácio Milesi, M.N.A.A., 2011, pp. 26- 47.

[11] Cf. sobre esse perdido tratado de Francisco de Holanda o livro de Pedro FLOR, Arte do Retrato em Portugal nos Séculos XV e XVI, Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, pp. 313 e segs., com referência ao elogio de «uma proporção e igualdade que muito satisfaz e contenta» (…) pois que «o tratar da Pintura é a cousa mais digníssima deste mundo, e o tirar ao natural aquilo que só Deus fez por tão investigabil sabedoria como Ele sabe»...

[12] Cf. Julián GÁLLEGO, El pintor de artesano a artista, Universidade de Granada, 1976, e Nuno SALDANHA, Artistas, imagens e ideias na pintura do século XVIII. Estudos de iconografia, prática e teoria artística, Lvros Horizonte, 1995.

[13] Sobre Manuel Denis, cf. Maria José REDONDO CANTERA e Vitor SERRÃO, «El pintor portugués Manuel Dionis o Dinis», Actas das XII Jornadas do CSIC El Arte Foráneo en España. Presencia y influencia, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, 2005, pp. 61-78.