Uma ficha analítico-descritiva como explanação de análise de obra de arte.

3 Outubro 2019, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

Tomamos como exemplo de ficha analítico-descritiva de obra de arte uma tela do século XVII que representa TRÓIA ABRASADA COM ENEIAS E ANQUISES, da autoria de Diogo Pereira, um pintor do século XVII que, pela sua irreverência e desalinhamento, bem pode considerar-se ainda como um expoente do Maneirismo 'foras do tempo'. No contexto da pintura portuguesa do tempo da Restauração, é deveras singular a personalidade de Diogo Pereira, o nosso único «pintor de incêndios e catástrofes» do século XVII, o que o torna equiparável a nomes ilustres como o napolitano Cornelio Brusco, o lorenense Didier Barra (chamado Monsù Desiderio) ou o nórdico Brueghel de Velours. Bem integrado entre os destaques portugueses do seu tempo (José de Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos), a sua produção conhecida situa-se entre 1630 e 1658 e mereceu dos seus contemporâneos, e de autores sequenciais (Félix da Costa Meesen, Pietro Guarienti), rasgados elogios pela sua operosidade num ‘género’ de pintura de temática trágica, então muito valorizado, onde episódios clássicos como Tróia abrasada (Eneias e Anquises), ou cenas vetero-testamentárias como Incêndio de Sodoma e Gomorra, contracenam com temas sacros, naturezas-mortas, bambochatas, cenas a la candela ou lume di vela, dentro da boa tradição barroca napolitana. Pintor de sucesso, que ocupa cargos importantes no seio da Irmandade de São Lucas, Diogo Pereira trabalhou principalmente para um mercado predilecto, as colecções dos conspiradores de 1640 e demais possidentes do novo regime. Eram estes quem lhe encomendava quadros com o tema de Tróia abrasada, muito popularizado nos círculos restauracionistas pela sua simbologia ligada a uma parenética nacionalista de combate anti-castelhano, onde a figura de Eneias, o príncipe troiano, se identificava com os atributos e valências de D. João IV, espécie de novo Eneias libertador do seu povo. 

Analisa-se a tela, comparando-a com outras representações do mesmo tema em Portugal, Itália, Espanha e Flandres, e outras obras de Pereira, a fim de perceber melhor o que a obra significou e significa, O artista pintou dezenas de quadros com este assunto, em tela, em cobre e, mais raramente, em madeira. O painel, executado nos anos de 1640-1650, tal como outros com destino a clientes que inequivocamente se identificavam com o espírito restauracionista e a militância pró-brigantina, tem inequívoco carácter político e parenético. Mostra as qualidades plásticas do artista, o seu gosto por uma linguagem de abertura ao fantástico na cenografia das arquitecturas e dos ambientes (ainda que mostre certa dureza de desenho de figuras, inspiradas sempre em fontes gravadas italo-flamengas), e a desenvoltura do discurso parenético que lhe grangeou sucesso no panorama artístico português de Seiscentos. Após o natural apagamento que o século XIX trará por este tipo de pintura, a obra de Pereira tem sido justamente revalorizada nos últims anos, sobretudo depois da grande exposição Rouge et Or. Trésors du Baroque Portugais (Paris, 2001), que mostrou, devidamente restaurados, uma dezena de peças deste artista – caso único, a nível nacional, por um género de pintura de caprichos e catástrofes muito apreciado pelas circunstâncias de um tempo de crise como foram os anos de guerra do Portugal Restaurado.

A análise global e comparatista da peças -- da fortunas Histórica à Fortuna Estética, passando pela Fortuna Crítica -- permite perceber melhor o sentido da pintura e a sua importância histórica, artística, iconográfica, iconológica e estética.