A conquista da Liberalidade artística no Renascimento.

6 Outubro 2020, 11:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

´Pintores, luminadores, agora no cume estam’, escrevia Garcia de Resende na sua famosa Miscellanea, escrita nos anos 20 e saída em 1554, juntamente com a Chronica de D. João III.  O poeta-escritor destacava, nesse poema, aquilo que era uma realidade: o ascenso social dos artistas portugueses e o estatuto de privilégio que muitos deles auferiam fruto de uma consciencialização que paulatinamente se impusera... A reivindicação de uma dimensão estatutária por parte dos nossos artistas do século XVI, à luz do que na Itália do Renascimento se entendia por liberalità, nobiltà e virtú, tem sido tema privilegiado da História da Arte.  Tais valores, gerados no seio do Humanismo cristão, contribuíram decisivamente para que pintores, escultores, arquitectos, ourives e outros praticantes do que então se designava por «ofícios mecânicos» saíssem da tutela corporativa de Bandeiras (como a de São Jorge) e adquirissem um novo estatuto social, com reforçada auto-estima e maior afirmação autoral. 

A reivindicação de um estatuto de liberalidade é uma constante na literatura do Humanismo da época de D. João III, antes mesmo de um Francisco de Holanda regressar de Roma e escrever o tratado Da Pintura Antigua (1548). Para os bons artistas nacionais, que a exigência de qualidade da arte praticada tornava homens cultos, era absolutamente humilhante que, ainda em 1539, o Regimento dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa continuasse a considerar pintores, escultores e arquitectos como «oficiais mecânicos» sujeitos aos deveres gremiais e às obrigações das Bandeiras corporativas... 

Importa-nos explorar também, por ser muito útil à História da Arte, o conceito de larga conjuntura, com atenção aos periferismos, aos epigonismos e às resistências / continuidades formais. Publicado pela editorial Taurus (Madrid, 1989) na prestigiada colecção Conceptos fundamentales para la Historia del Arte Español a obra El Largo Siglo XVI. Los usos artísticos del Renacimiento español, de Fernando Marías (n. 1949), introduziu na prática da História da Arte peninsular a análise trans-comparatista e trans-contextual do facto artístico aplicada à conjuntura renascentista, seguindo o princípio da conjuntura larga para analisar os fenómenos de persistência, revitalização e ruptura na evolução dos comportamentos histórico-artísticos. Para além de um Renascimento histórico que tem referências grosso modo na primeira metade do século XVI, existiu uma situação epirenascentista com prolongamentos e ressonâncias até ao século XVII.

O tempo do Renascimento em Portugal (sécs XV-XVI), com suas extensões e perenidades, foi vivenciado à luz do humanismo e da globalização. Diz Ana Paula Avelar que «as várias as faces do Renascimento tocam novos olhares em torno do mundo natural, do exercício político, da arte da guerra, do papel da mercancia e dos seus agentes, das estratégias da sua escrita e representação do Outro. A reflexão sobre os usos do conceito de Renascimento lança vectores de problematização em torno de um período tão nuclear para a cultura portuguesa que impõe abordagem multidisciplinar».

João de Barros (1496-1570) , historiador, geógrafo, gramático, pedagogo, escritor, funcionário da corte de D. João III, escreveu em 1532 a sua obra Ropica Pnefna, onde define os ‘graus’ da arte da  Pintura e afirma que «a vista tem suas forças de potência visiva, cujo ofício é receber cores, figura e luz», sendo a Alma uma «távoa com pinturas» que nos acompanha ao longo da vida na sua «prisca beleza». Na famosa Crónica do Imperador Clarimundo, João de Barros volta a descrever o texto como uma espécie de «pintura metaphorica» das «origens, antiguidade e nobreza» do próprio Reino de Portugal: no Portugal joanino, as artes estavam no auge da consideração e entendiam-se como um verdadeiro processo de liberalidade.

As valências culturais renascentista no Portugal do tempo manuelino-joanino são, pois, estes conceitos transformados em valores de conduta e metas a atingir: Liberalità – Virtú –  Antichità – Nobiltà --  Libertà - Idea – Res Publica.