Trento, entre liberdade e censura.

10 Dezembro 2020, 08:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

EROS E DECORUM NA PINTURA PORTUGUESA

O NU E A CARNE, CONTRADIÇÕES DA FÉ, ÊXTASE ENTRE LUXÚRIA E DISSIMULAÇÃO, GROTESCO E BRUTESCO, AMORES CASTO E PROFANO, PORNOGRAFIA E AMORES LASCIVOS, NO DISCURSO DAS ARTES ANTES E DEPOIS DA CONTRA-REFORMA.

 

 

     O corpo, pretexto eterno de criação artística, exaltação de fogo e da sensualidade carnais, afirmação insubmissa de desejos e de liberdade arrebatada, de dissimulações e de ousadias, é também factor cíclico de actos censórios, de peias repressivas e de indicadores de moralidade que o transformam, de rebelde ‘ilha de prazeres’, em decoroso testemunho da ordem instituída. Ao longo dos séculos, as obras de arte falaram-nos constantemente dessa dualidade de sentidos, desse auto-contrôle imposto aos criadores, dessa viagem parangonal em que «o sutil movimento dos olhos, cuja vista Amor cegou», como diz Camões, se transforma em território de consensos.

     Em todas as épocas, desde a mais remota Antiguidade, o erotismo se soube unir às artes plásticas e à literatura sob formas mais claras ou mais disfarçadas de um discurso de obsessões e encantações que tende a converter-se em testemunho da materialidade do desejo. Georges Bataille (1897-1962), no seu célebre livro L’érotisme, reflectiu sobre essa (o)posição interna do desejo incontido que escorre das fímbrias do discurso poético e pictural pela sua dimensão transgressora (ex.: a interdição bloqueia o impulso transgressor se a emoção é negativa, mas o acto transgressor suplanta o poder inibidor exercido pela interdição se a emoção for positiva). Pelo entrelaçamento de emoções, a expressão erótica revela-se: basta analisarem-se as acções censórias do decurso da História para se perceber que o que torna difícil falar de interdito não é a variabilidade dos objectos mas seu carácter ilógico; não existe interdito que não possa ser transgredido, ou anulado, conforme as conjunturas vigentes da moral e do gosto. O erotismo tratado nas variadas configurações das artes contribui para a tematização do prazer, deslocando o objecto da sedução e centrando-o no seu próprio «fazer poético», que envolve a relação sexual concreta (ou apenas sugerida) e a transforma num obscuro objecto do desejo. Outro autor, o sociólogo Anthony Giddens, no ensaio A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas (1992), discutiu as noções de modernidade e reflexividade à luz das mudanças da História e da convivência pública e privada, em que a sexualidade, a promiscuidade e o desejo se relacionam com o inconsciente reivindicativo através da aventura sexual extrema e das suas relações com uma dimensão quase religiosa: o eu poetante investe conscientemente no desejo, fazendo do discurso a projecção de seus anseios e, centrado no deslizamento dos signos, estabelece um pacto de cumplicidade com o espectador / leitor, na medida em que entra em sintonia com o desejo descrito ou representado. Segundo outro autor, o historiador de arte Giulio Carlo Argan, a arte erótica da Renascença, à luz de um ponto de vista rigorosamente fenomenológico, sublinha os seus significados poderosos (nas obras dos pintores maneiristas florentinos Pontormo e Bronzino, por exemplo). Os aspectos ocultos de uma obra de arte com estas características de investigação sobre o prazer ganham significação do carácter expressivo das formas e, quando nos surgem na intersecção entre objectividade e subjectividade, possibilitam uma história das imagens …. A obra de arte é sempre um fazer eloquente e exemplar que, em última análise, tem como horizonte a produção de objectos perfeitos, aptos a criar valores num movimento contínuo que traz necessariamente consigo uma temporalidade de ordem histórica em que passado, presente e futuro se condensam na obra em si.

     Durante o século de Quinhentos, temperado embora após a segunda metade do século, já sob signo da Contra-Reforma católica, existem na nossa pintura sacra e profana irreverências de Eros, mais ou menos ousados e abertos à carga sensual, mas que dão lugar a um maior comedimento por razões doutrinárias: assim o exigiam os dogmas catequizadores que o Concílio de Trento viera estabelecer como norma para os artistas. A grazia corpórea do Renascimento e a nudez serpentinata da Bella Maniera deram paulatinamente lugar a uma corporalidade de convenção, raras vezes aberta à licenciosidade de um nu integrado em alegorias morais ou, mais raro, numa versão de temas histórico-mitológicos, desde as Metamorfoses de Ovídio à Eneida de Virgílio -- tolerados por um mercado artístico que, apesar de tudo, sentia a força comunicativa das imagens ditas, escritas, recriadas em movimento ou concebidas pela arte (a poesia, a literatura, o teatro, a pintura) e o enorme poder social que através delas podia ser expresso. O Portugal pós-renascentista sentiu também, naturalmente, este apelo à expressão corpórea como poderoso terreno para exprimir a alegoria moralizante, através dela afirmando essa constante parangona entre o Eros dos sentidos e o Decorum do contrôlo oficial. Inúmeros testemunhos exarados dos processos do Santo Ofício revelam-nos como, durante a segunda metade do século XVI e ao longo do século XVII tantas obras de arte foram mandadas destruír pelo seu «apelo licencioso», ou repintar e alterar pela sua «formosura dissoluta» e «falso dogma», sabendo-se de artistas que foram chamados a depôr no tenebroso Tribunal da Inquisição (como Domingos Vieira, o Escuro, e o próprio Fernão Gomes, pintor régio de Filipe I, ambos por causa de certas obras não conformes ao «decorum» oficializado). Esta era a situação dominante na sociedade portuguesa do tempo de Luís de Camões, em que o peso dos ideais ultra-católicos impôs uma conduta muito especialmente controlada no que tocasse a representações artísticas – e é por isso que assumem tanto interesse as obras que, nesse contexto tridentino, ousaram afirmar o combate à intolerância e a ardência do apelo sensual, através da extrapolação da alegoria cristológica, ou seja, de uma hábil adequação dos temas aos objectivos de uma rígida moral.  

     Olhando-se uma peça tão notável como é o pequeno desenho O Amor Virtuoso castigando a Fortuna, do pintor Francisco Venegas, em que no limite de um minúsculo papel de 14 x 9 mm esse notável pintor cortesão desenhou um corpo de mulher em contrapposto, numa flagrante pose de nudez, açoitada por esbelta figura masculina, também desnuda, com um peixe, observamos como, mesmo em tempo de asfixia das veleidades sensuais, um artista oficial como era Venegas pôde desenvolver em perícias de traço o sentido da volúpia e a ardência do erotismo mais cru. O espaço restrito onde os nus formam núcleos em movimento, atraído pela perspectiva ambígua que envolve a cena, com olhares ocultos e uma sólida percepção sensorial no discurso das formas expostas, são expoentes de um singular inconsciente erótico-religioso. O artista incita à visão, isola tudo o que desperta uma resposta dos sentidos. A narrativa erótica ajuda a descobrir a ordem da vida tangível, a experiência humana, a linguagem simbólica que revela arquétipos do inconsciente. Desenhando o erotismo no decurso do traço, numa depuração artística com sobressaltos e anseios amorosos, a alegoria moral conduz à sedução sem freios e ao combate de opostos que se atraem. O elogio é o da beleza em si, desnuda e libertadora... Assim, o estudo de Venegas (Gabinete de Desenhos do Museu Nacional de Arte Antiga) mostra que era possível a resistência à intolerância e a exploração do espelho dos sentidos vitais, mesmo que recorrendo à alegoria casta, já que a composição de Venegas mais não é do que uma alegoria ao Amor Virtuoso, na linha de outras representações neoplatónicas do Renascimento italiano e nórdico. O capricho e a ambiguidade orientam o traço: nem a Volúpia parece submissa, nem o elemento cristológico do peixe esgrimido como arma punitiva mostra uma leitura moral inequívoca, sabendo-se como também identifica, em termos iconográficos, o símbolo fálico e, em extensão, o próprio amor lascivo... O artista era conhecedor de modelos de Rosso Florentino, dos livros com estampas da Emblemata Liber de Andrea Alciato, das Immagini dei Dei degli Antichi de Vincenzo Cartari, e por isso naveqava bem, por isso, nas águas de uma cultura neo-platónica onde a sonoridade da alegoria rimava com o timbre sensual das formas. Havia por certo clientes de sólida cultura italianizante aptos a entender as irreverências do intelecto...

     É facto que a reacção católica às críticas erasmianas e protestantes, e a rigidez dos novos ditames procedentes da Contra-Reforma, levaram a partir do terceiro quartel do século XVI a uma cuidadosa revisão da iconografia das representações sagradas, definida pelos teólogos de Trento no sentido de disciplinarem o uso das obras destinadas ao culto. Era importante assegurar que estas não contivessem qualquer desvio às linhas catequizadoras com que se pretendia encarar a função das «imagens sagradas», no quadro de uma espécie de ‘fim da História’, a ars senza tempo. Sob o lema «nihil profanum, nihil inhonestum, nihil insolitum», as obras de arte deviam servir com propriedade. O encantamento pelas formas nuas e pela magia sensual da carne, mesmo contornada sob as vestes, eram caprichos não mais toleráveis, pelo menos no terreno da arte religiosa. Obscuros pintores agiam em nome da virtude tridentina, retocando painéis antigos, cobrindo partes ditas licenciosas, pintando integralmente frescos e decorações de tónus ‘desonesto’ – assim intervindo como iconoclastas inflamados, de que restam tantos testemunhos nos autos inquisitoriais remanescentes nos arquivos... Lembramos o caso de um quadro com a Virgem e o Menino mandado da Flandres para uma vila portuária do Norte em início do século XVII e, que pelo facto de um zeloso visitador da Igreja achar licenciosos os pés nus e as pernas algo afastadas de Maria, mandou que a tela não fosse desembarcada antes de um pintor do sistema a vir repintar, aumentando o panejamento a fim de cobrir as partes polémicas.

      É por isso que, neste contexto de repressão das ideias, das obras e da criação livre, tem tanto interesse uma pintura do mesmo Francisco Venegas executada para um altar da igreja da Graça em Lisboas, que representa Santa Maria Madalena em êxtase. Se não podemos ter certeza absoluta de que o referido desenho de Venegas foi depois executado em decoração pictórica (acaso em fresco para revestimento de um salão de residência aristocrática, «ao modo italiano»), já esta bela tábua maneirista de cerca de 1580 nos chegou incólume, e mostra um bom testemunho de uma visão erótica das formas feminis em contexto de culto. As liberdades de acção que, apesar de tudo, afloram nas fontes de inspiração dos melhores artistas da época – e que também se atestam noprograma alegórico afrescado num dos tectos do Palácio dos Condes de Basto em Évora, pintado em 1578 por Francisco de Campos com suas «ninfas galantes» da Antiguidade clássica -- mostram um sentido de ousadia formal bem acentuado. Em tempos crus de repressão contra-reformista, é esse apelo à irreverência e à sensualidade dos valores femininos que se impõe destacar como uma constante do comportamento artístico, mesmo em épocas menos atreitas a cultuar essa via de refinamento para-erótico.

     O que levou Francisco Venegas, pintor régio de Filipe I de Portugal e um dos melhores artistas da sua geração, a pintar essa irreverente Santa Maria Madalena num altar do Mosteiro da Graça em Lisboa, articulando uma ousada exploração do nu a modos de Bartolomeu Spranger em Praga ou de Hans Speckaert em Roma, não é só o peso de uma cultura maneirista romana, em cujos modelos o artista foi educado. Essa lição explicaria, por certo, os efeitos fantásticos de contra–luz, as ousadias no alongamento e serpentinado das formas, as figuras em contrapposto e as tensões do espaço – mas não já essa atenta exploração do erotismo, de gosto anticlássico, numa agressiva ambiguidade contra a ordem estabelecida, onde a obsessão pelas carnes expostas denuncia o deleite pela fogueira da paixão e o ardor dos sentidos, exaltando forças vitais. Num tecto de capela lateral na igreja agostiniana de Nª Sª da Graça, em Lisboa, o mesmo Venegas pintou uma Alegoria à Verdade (disposta entre outras alegorias morais), exaltando a nudez descomposta e cortesã, que aproximam o gosto do artista dessa tensão para-erótica que já palpita no desenho O Amor Divino castigando a Fortuna e também numa belíssime Eva neo-platónica que surge em primeiro plano no quadro Alegoria à Imaculada Conceição da igreja da Luz de Carnide.

     É certo que, tal como o poeta Camões, a personalidade de Venegas, com a sua paleta brilhante, solta de mancha e requintada de desenho, trai um rebelde temperamento («de espirito muy levantado em suas ideias» conforme o descreveria o tratadista Félix da Costa Meesen), mas é nessa mancha de ambiguidade que reside o seu maior interesse de criador, dividido nesse conturbado final de Quinhentos entre a espiritualidade exposta nas teses de São Carlos Borromeu ou do Cardeal Gabriele Paleotti e o gosto ardente pela alegoria e pela sensualidade das formas. Erotismo e decorum andam, em Venegas (e também em Camões), de mãos dadas. No quadro das condições de trabalho que o mercado artístico português poderia oferecer, com limitações e instrumentos de contrôle muito marcados, a inflamação para-erótica que se regista nos testemunhos citados parece constituír uma veia corajosa de autonomia e liberalidade criadora. Num tempo que privilegiava a oração e a eficácia do exemplo, era certamente mais popular uma obra como a que Simão Rodrigues e seus colaboradores pintaram para o arcaz da Sacristia do Mosteiro dos Jerónimos, já no dealbar do século XVII, onde se narra a vida virtuosa de São Jerónimo: um dos quadros mostra o santo eremita a ser tentado por um grupo de «mulheres licenciosas» que, pela mão do próprio demónio, vêm perturbar o santo nas suas orações no deserto... Essa imagem era certamente mais preferida que a «nudez descomposta e carnal» das figuras pintadas por Venegas ou imaginizadas por Camões na épica «ilha dos amores».

     Um dos temas recorrentes na poesia de Camões é justamente o Amor; o poeta . assume simpatia pelos que sofrem por amor, e esse conflito entre o pensamento divino e o  corpo terreno (já destacado em Jorge de Sena, Hernâni Cidade, Vítor Aguiar e Silva) incorpora uma entrega ao amor do corpo sem deixar de aspirar a um outro, o amor divino, que remete à distinção feita por Erixímaco no Banquete e, de modo geral, na doutrina neoplatónica do Renascimento e nos preceitos do discurso de Sócrates. Em Camões,  o amor carnal gera a via de encontro com a beleza da alma, e o amor natural é elevado de vício à virtude, pois torna possível alcançar a esfera divina, a Beleza, a perfeição de Deus. Através da intervenção da graça divina, que transforma o amor material em espiritual, é a doutrina do Humanismo cristão que aqui se incorpora, como é visível numa moral de superação dos vícios da carne no poema Sôbolos rios que vão... O ensaísta Eduardo Lourenço viu nos «bem visíveis ‘raios de formosura’ da doutrina de Platão» fonte para as redondilhas de Sôbolos Rios foram escritas: «…E vi que todos os danos/Se causavam das mudanças”.

     Mudando de registo para um olhar sobre a pintura mural da aristocracia alentejana (que é riquíssima !), os estudos mais recentes sobre o ciclo de frescos maneiristas do Paço Ducal de Vila Viçosa e do Palácio dos Condes de Basto em Évora, e da obra de cavalete do pintor régio Francisco Venegas para várias igrejas da capital, vêm atestar de modo convincente uma faceta para-erótica, até há pouco insuspeitada, que caracteriza (e revaloriza) a nossa produção pictórica da segunda metade do século XVI e alvores do século XVII. Sob inspiração dos modelos maneiristas italianos, e com abertura a sugestões neo-platónicas de raiz ovidiana e à emblemática histórico-mitológica, a nossa pintura a fresco e a têmpera mostrou-se em condigno alinhamento com o mesmo gosto requintado e sensual que, à época, tanto peso assumia na decoração de salões da realeza, de câmaras e gallerietas nobres, ou de capelas e oratórios privativos, onde o capricho da Bella Maniera e a sedução pelo erotismo – apesar de se viver já um contexto de Contra-Reforma católica, com as suas redes de controlo e as suas visões ultra-moralizantes – acabam por se impor em ciclos artísticos de eleitos. As obras de pintores como Campelo e Francisco de Holanda, Francisco de Campos e Giraldo Fernandes de Prado, Tomás Luís e André Peres, e de iluminadores como António Fernandes e Jerónimo Corte-Real, atestam que o mercado português destes ano se não alheou das ardências carnais e das seduções para-eróticas em temas históricos e alegóricos, ambiguamente concebidos entre o religioso e o profano, que revelam, no fim de contas, um olhar atentíssimo para os mesmos percursos artísticos dimanados dos centros italianos do Maneirismo. Será importante cotejar os ciclos de pintura referenciados com a riqueza da literatura coeva, de Camões a António Ferreira e mesmo a Jorge Ferreira de Vasconcelos, na busca de tópicos, encantações e interesses que, no fim de contas, se revelam coincidentes.

     Conclui-se que, à margem de uma arte ‘oficial’, nunca deixou de se desenvolver uma outra, profana, caprichosa, alegórica e sensual, que toca todos os ramos da criação e chega a atingir altos padrões de qualidade. Os grottesche de Perino del Vaga e Giovanni da Udine e as grisalhas de Polidoro da Caravaggio tiveram ecos nas decorações de paços reais (Sintra, Xabregas) envolvendo pintores como Gaspar Dias, e a sedução erótica dos frescos da Sala Oval do Paço dos Condes de Basto em Évora, obra do neerlandês Francisco de Campos (1578), atesta essa maneira caprichosa e intimista que seduzia sectores de literati, inspirados nas Metamorfoses de Ovídio. Temas como o Mito de Danae, a História de Diana, a Saga de Perseu, as aventuras de Eneias e Ulisses, os feitos de Hércules, a imagem de Eva / Nova Eva, contam-se entre as temáticas que continuavam a seduzir os públicos (frescos, painéis, tapeçarias, iluminuras, gravuras de livros) e mostram a abertura inflamada a um pathos sensual, arrebatador e neo-antigo, que valoriza por certo a arte portuguesa do Pós-Renascimento.