As nossas paredes

8 Abril 2019, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

ABRIL                                   2ª FEIRA                               10ª AULA

 

8

 

Ficou em suspenso na nossa última aula  a referência à escritora americana Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) e ao seu conto The Yellow Paper (1892) que serve de inspiração a Jelinek, na medida em que a protagonista da narrativa de Gilman «no final da história rasteja como uma coisa e despojada de humanidade entre o papel de parede e a parede.» (Britta Kalin, Amerikanisch-österreichische Intertextualitäten und schreibende Frauen in Jelineks ‘Der Tod und das Mädchen IV (Jackie) und ‘Der Tod und das Mädchen V (Die Wand) in:  Pia Janke & Konstanze Fladischer (Ed.) 2017. Jelinekjahrbuch, Elfriede Jelinek  Forschungszentrum 2016-2017, Wien: Praesens Verlag, 146)  O acto de se enfiar entre o papel e a parede é para a narradora e protagonista um alívio - «I’ve got out at last!» (Idem, ibidem: 146) Recorde-se que esta autora, tal como as referenciadas autoras da peça de Jelinek, sofria de depressão continuada sobretudo no pós-parto. O seu casamento com o médico Walter Stetson não foi feliz.

https://en.wikipedia.org/wiki/Charlotte_Perkins_Gilman

https://www.youtube.com/watch?v=PRpBqRd0OOY

Tivemos hoje a nossa primeira sessão de close reading de um texto programático e que corresponde à versão para palco da tradução por mim realizada da peça A Parede de Elfriede Jelinek.

Penalizo-me por não o ter feito com pelo menos uma Composição para Palco de Kandinsky.

Aproveitando o trabalho anteriormente feito por Alexandre Pieroni Calado, que se revelou francamente esclarecedor e muito circunstanciado relativamente às grandes questões colocadas pelo texto, pedi aos alunos que fizessem em casa um levantamento de todas as passagens em que a palavra parede, também muro (p. 7), rochedo (p. 29), surge na peça de Jelinek.

Verificámos que o objecto parede antes de existir na peça é configurável pela nossa experiência perceptiva como ideia, materialização e representação. De tal modo esta constatação adquire verosimelhança e incorporação, que nos confrontámos com o facto de que estávamos numa sala de aula, enclausurados por quatro paredes, e até esse momento não tinhamos sequer tomado consciência disso.

Mas a obra de Jelinek é muito mais complexa do que este mero exercício de recurso e que nos leva a pensar que todos sabemos o que é uma parede. Depois da leitura de Jelinek não sei se poderemos estar assim tão certos.

Constatámos que sendo as várias formas de representação de A Parede quase sempre as de um objecto tridimensional, verificámos também que a sua presença depende directamente da relação estabelecida com as personagens em cena. A parede nunca nos aparece por si e em função de si. No entanto, a sua presença pode ser invocada como transparente (p. 6), invisível (p. 5), espelhadora (p. 9), objectivável, não objectivável, alvo de disputa (p. 4) e pode mesmo tornar-se alvo de personificação (p. 5 e 6), ser autofágica (p. 5), propulsora de vampirismo (p. 5), ter sentimentos, ser insaciável (p. 6) e até antropofágica (p. 6). Eis alguns exemplos da nossa pesquisa conjunta.

De uma perspectiva tão multifacetada e tão singular esta instância, chamemos-lhe assim, torna-se no principal interesse do discurso e acção das vozes que atribuem à parede tudo o que de si nela projectam. A parede é finalmente apresentada como «parede do conhecimento» (p. 6). Talvez seja este o seu principal atributo, o que nos faz pensar que qualquer que seja a relação com a parede, ela é motor de aprendizagem, ou pelo menos de reconhecimento de que essa aprendizagem seria possível.

Sendo a variabilidade de caracterização da parede uma forma de nos despertar para a sua função gnoseológica e instrumental (a parede como revelação), pelo reconhecimento que dela fazemos e consequentemente que nos conduz a pensar-mo-la e a sobre ela podermos fazer juízos de valor, isso significa então que poderíamos considerar uma forma de desdobramento da parede, da parede do conhecimento, na figura de Marlen/Therese/ Tirésias. A ordem de enunciação não é de todo arbitrária.

Se considerarmos o romance de Marlen Haushofer como um dos pontos de partida para a escrita desta peça, a ordem é esta. Mas se, pelo contrário, entendermos que mais importante do que o romance da autora austríaca é a figura mitológica de Tirésias, saberemos respeitar uma outra ordenação. Associar A Parede à transformação interior, à busca de conhecimento, à escuta de um oráculo que nos procura encaminhar para o alcance da verdade parece melhor responder às muitas perguntas que a peça nos coloca.

Não parece que Sylvia e Inge, só porque alcançaram o cume do rochedo se tenham tornado em heroínas da demanda infinda. Permaneceram infantilizadas ou a essa condição retornaram (1ª didascália, p. 30), perderam o alimento, o sangue (2ª didascália, p. 30), aquele que proveio do esquartejamento do bode. O que terão aprendido com tudo isto? Nem a voz difusa de Tirésias /Therese/ Marlen lhes trouxe salvação. A pensar nas últimas duas narrativas da peça, nem a parede foi capaz de as resgatar.

 

Leitura complementar:

Para efeito de citação e por se tratar de um instrumento de trabalho anotado e que corresponde à versão de palco trabalhada com Alexandre Pieroni Calado (encenador) e Paula Garcia Actriz), recorro à minha tradução da peça em dactiloscrito e de ora avante sempre a ele.

 

Elfriede Jelinek, A Morte e a Donzela – Dramas de Princesas, tradução e nota introdutória – Onde começa e acaba uma princesa? - de Anabela Mendes, Lisboa: Artes & Engenhos (edição de 25 exemplares numerados), 2018.

 

Elfriede Jelinek, A Morte e a Donzela – Dramas de Princesas, tradução e nota introdutória Onde começam e acabam as princesas? de Anabela Mendes, Lisboa: teodolito/ edições afrontamento, 2019.