Bauhaus - um século depois

27 Janeiro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

ESPECTÁCULO E COGNIÇÃO

 

Ano lectivo de 2019-2020

 

2º SEMESTRE

 

Anabela Mendes

lendário Escol

 

 

Calendarização das aulas

Versão em actualização

 

Horário:

2ª Feira - das 14:00 às 17:00

Sala de Vídeo

Recepção de alunos: 2ªª feira das 13:00 às 14:00 na sala 2.2 ou em espaço aberto, sempre a combinar.

 

JANEIRO                             2ª FEIRA                               1ª AULA

 

27

Primeiras impressões de como iremos realizar a concretização do nosso programa no seminário de Espectáculo e Cognição. 

 

1. Encontrámo-nos pela primeira vez. Três alunas e três professores. De cada lado havia uma ausência justificada. Faremos em breve a integração dessas pessoas.

Quisemos saber um pouco de cada um num gesto agregador quer das alunas participantes quer dos professores com quem elas irão trabalhar.

2. O assunto que nos junta neste semestre é o estudo de algumas possibilidades artísticas, com efectiva realização contemporânea, sob a modalidade de reconstrução, de obras que tiveram lugar durante a vigência da Escola Bauhaus entre 1919 e 1933 em Weimar, Dessau e Berlim.

A escolha da Bauhaus como modelo de Escola de Artes tem a vantagem de se nos apresentar como um lugar de estudo e experimentação que privilegiava a efectiva interdisciplinaridade entre conteúdos e sua aplicação prática, criando ao mesmo tempo um espaço relacional e de funcionalidade com a comunidade exterior à Escola e para a qual ela deveria trabalhar. O projecto científico-pedagógico era também um projecto social e político. Em última instância a Bauhaus deixou para a posteridade uma marca estética e operativa inconfundível sobretudo a partir da disciplina agregadora de arquitectura.

O carácter único desta Escola marcou para sempre o espírito de construção e organização do espaço habitacional ao longo do século XX e em várias partes do mundo, onde a inspiração bauhausiana continua a dar frutos visíveis não só nos edifícios erigidos

https://www.archdaily.com.br/br/929563/guia-de-arquitetura-bauhaus-100

mas igualmente em termos metodológicos, na escolha e no uso de materiais, na sensibilização ao espaço, na organização funcional de interiores, na captação de fontes de luz natural, na proporcionalidade da altura dos edifícios, sempre com o desígnio de criar bem-estar e harmonia para as pessoas.

A arquitectura não é nosso tema neste seminário mas dela decorrem princípios gerais (relação da corporalidade com o espaço, tratamento de luz, sua ausência, e sombra, selecção e uso de materiais) que poderemos encontrar expostos, por exemplo, na concepção de obra cénica e que derivam do diálogo profícuo entre várias disciplinas como o desenho, a pintura, a dança, a criação de movimento a partir de objectos inanimados, a competência de tecidos e outros materiais para a criação de plasticidade funcional.

As várias modalidades de estruturação inerentes às disciplinas oferecidas pela Bauhaus (veremos organogramas criados por diversos mestres) permitem-nos ter uma perspectiva da visão agregadora do conhecimento defendida pela Escola. A síntese das artes ou a possibilidade de criar obra de arte total (versão moderna de Richard Wagner) estiveram sempre no horizonte utópico dos Bauhäuser (professores e alunos) conferindo à Bauhaus um carácter projectivo único à época mas também de natureza irrepetível como um todo.

3. Para melhor compreendermos o alcance deste projecto científico, pedagógico e artístico nos dias de hoje visionámos um documentário de Niels Bolbrinker e Thomas Tielsch intitulado Vom Bauen der Zukunft – 100 Jahre Bauhaus (Da construção do futuro – 100 anos da Bauhaus).

O filme em questão parte de uma realidade actual no campo da habitação em alguns países da América do Sul mas que poderia igualmente ser referenciada em outras partes do mundo. Refiro-me à construção desenfreada de habitações sem planeamento e sem condições básicas mínimas que albergam milhões de pessoas sem qualquer qualidade de vida. A urgência do desmantelamento destes amontoados caóticos e que mais potenciam a morte do que a vida não tem resposta política de governos inclinados sobre o seu próprio bem-estar. Disto fala o filme que vimos e nele encontramos técnicos que até pensam como seria viável arrasar esse tecido urbano deformado e substituí-lo por casas simples inspiradas em protótipos e modelas criados durante a vigência da Bauhaus. Este é o espírito que mantém vivo o que foi esta Escola. A dimensão social do projecto arquitectónico da Bauhaus apresenta ainda hoje soluções de aplicação prática e funcional que poderiam oferecer conforto e aconchego a pessoas que vivem de modo insalubre e desumano.

Mas o filme tem ainda a virtude de nos confrontar com diversos exemplos de uma utopia, que deixou de o ser por escassos anos, na medida em que nos mostra um arquivo vivo das artes e suas potencialidades associado à História de uma época, o período compreendido entre o final da I Guerra Mundial e a ascensão do nacional-socialismo.

A História da construção arquitectónica que nasceu e se desenvolveu com a Bauhaus foi sendo alvo das preferências e orientações dos seus directores, todos eles arquitectos, o que fundamenta a prevalência desta área do conhecimento sobre todas as outras ensinadas na Escola. No entanto, a consciência de um projecto multidisciplinar como previa a essência da própria Bauhaus encontra nos planos curriculares a vontade experimental e vanguardista de pôr em acção um modelo completamente inédito de ensino/aprendizagem. É o caso, por exemplo, da implementação do construtivismo de inspiração russa, que terá marcado as linhas de conduta da direcção da Escola, quando à frente dela esteve Hannes Meyer, o segundo director da Bauhaus, entre 1928 e 1930.

São deste arquitecto as seguintes palavras:

«arte?!

toda a arte é ordem.

ordem é debate entre o lado de cá e o lado de lá,

ordem das impressões dos sentidos do olho humano,

e dependendo do subjectivo, associado ao pessoal,

dependendo do objectivo, relacionado com a sociedade.

a arte não é um meio causador de beleza,

a arte não afecta o desempenho.

a arte é apenas ordem.»[1]

Walter Gropius (1919-1928) e Ludwig Mies van der Rohe (1930-1933) desenvolveram outros interesses diferentes dos de Hannes Meyer. No caso de Gropius, a projecção da Escola para o exterior existiu na sequência dos primeiros passos para a sua sedimentação como forma de sustentabilidade e autonomia financeira. Essa preocupação foi um dos seus principais objectivos com a intenção de integrar a Escola e de a relacionar com o espaço  cultural, artístico e social da cidade onde a Bauhaus teve origem.

Quanto a Mies van der Rohe, e já com muitas limitações de gestão independente da Escola, verifica-se, por exemplo, que o arquitecto-director propõe uma revisão de programas dos vários semestres de funcionamento dos cursos tornando evidente a necessidade de homogeneizar e escolarizar as matérias de ensino até então trabalhadas em regime aberto no espaço das oficinas e em detrimento do experimentalismo que caracterizava métodos e práticas e que cruzava em permanência artes e ofícios desde a abertura da Escola. A Bauhaus transforma-se nesta fase numa unidade de produção de protótipos, modelos e objectos com vista à colocação dos mesmos no circuito industrial alemão. Tal estratégia tem por finalidade atrair uma clientela ampla e demonstrar ao mesmo tempo a capacidade de sobrevivência da própria Escola perante às autoridades nacional-socialistas que ameaçavam fechar a Bauhaus a todo o momento, como veio a acontecer em 11 de Abril de 1933.

4. Interessante no filme que vimos em conjunto é ainda a demonstração de como se podem organizar módulos e protótipos de diferentes maneiras atribuindo por isso à junção neste caso dos sólidos novas possibilidades de uso da forma. O treino desta capacidade que nos aparece demonstrada noutros exemplos (articulação de varas) permite que tenhamos com o espaço relações de organização e de prospecção que integram o jogo como elemento criador no quadro de uma construção. Variantes deste procedimento ocorrem em obra cénica criada, entre outros, por Wassily Kandinsky e Oskar Schlemmer. Em ambos os casos, embora de modos muito distintos, somos convidados a apreciar como o espaço e os elementos nele circulantes é organizado progressivamente diante de nós. De certo modo tornamo-nos co-construtores de movimento e repouso criando desse modo uma relação com o que vemos (escutamos) independentemente do género e tipo de elementos que circulam diante de nós.

As formas visíveis e não visíveis permitem articular a criação de um espectáculo ou de um exercício que reúna várias artes em simultâneo ou de modo consecutivo.

5. Poderíamos continuar a analisar o filme até ao seu derradeiro momento. Esse momento é aliás uma replicação do seu início, como se esse reforço nos ajudasse a compreender que um ponto de partida regressa não como um simples ponto de chegada mas antes como uma possibilidade de relançamento. Foi assim que fiz interpretação.

A Escola, sendo uma espécie de excrescência no seio da sociedade alemã da sua época, em que o conservadorismo dominante, e em especial na Baixa Saxónia, quase fazia esquecer o brilho que iluminara a cidade de Weimar no séc. XVIII, e que agora estaria aberta a alargada e fulgurante repetição, a Escola dizia, tem afinal uma luminosa existência votada a um quase ostracismo e a um sentimento resistente. Este estado de coisas resulta de uma particular constelação de interesses e vontades em nome de um modo de aprender a viver com uma forte postura ética e social que a Escola nunca perdeu.

A inovação e o espírito vanguardista sentem-se nas imagens, no espólio fotográfico que podemos admirar e que atribuem à Bauhaus uma existência sem paralelo mesmo em função dos nossos tempos. E esta era a sua função primeira – interligar, articular, experimentar artes maiores e menores sem distinção de escala. O lugar de todas as artes foi ali em Weimar, Dessau e Berlim.

 

Filme visionado:

BOLBRINKER, Niels, TIELSCH, Thomas (s. d.), Vom Bauen der Zukunft – 100 Jahre Bauhaus (Da construção do futuro – 100 anos da Bauhaus), 90 min., alemão e inglês, arte edition.

 

Leituras recomendadas

DROSTE, Magdalena 2019. Bauhaus – A hundred years of Bauhaus, updated edition, Berlin: Bauhaus Archiv, pp. 130-149 e pp. 298-303.

JUSTO, José, Kandinsky e o Espírito. Três deambulações a propósito de «Fósforo Queimado, in: Anabela Mendes, 2003, Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, programa-livro do espectáculo, Lisboa: CCB, p. 71.

KANDINSKY, Wassily 1998, Sobre a Questão da Forma, Da Compreensão da Arte, A Pintura como Arte Pura, Conferência de Colónia in: Gramática da Criação, Lisboa: Edições 70. Apenas o primeiro ensaio é fundamental. Os restantes serão escolha de leitura dos alunos.

 

Nota breve

Serão disponibilizados aos alunos alguns capítulos do livro de Magdalena Droste recomendado através de We Transfer.


[1] A citação aqui apresentada é de Hannes Meyer, o segundo director da Escola da Bauhaus em Dessau, entre 1928 e 1930. A apresentação gráfica da referida passagem respeita o código ortográfico, só de minúsculas, utilizado pelo autor e frequentemente seguido por outros membros da Escola.  Reporto-me a artigo escrito pelo arquitecto suíço, em 1929, com o título bauhaus und gesellschaft (bauhaus e sociedade), cf. Wilma Ruth Albrecht: "Moderne Vergangenheit - Vergangene Moderne" (Passado moderno – Modernidade passada), Neue Politische Literatur, 30 [1985] 2, pp. 203-225.