Da intersecção das artes
17 Fevereiro 2020, 14:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
FEVEREIRO 2ªFEIRA 4ª AULA
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Recebemos hoje mais dois alunos no nosso seminário: a Andrèzza Alves e o Marcondes Lima, ambos do doutoramento em Artes (versão sucinta).
Anuncia-se mais um aluno assistente, o Paulo Martins.
De todos, alunos oficialmente inscritos e assistentes, esperamos que encontrem entre nós bom estímulo e receptividade para as propostas programáticas que já estamos a desenvolver.
Retomando o assunto principal da aula de hoje, a composição para palco Quadros de uma Exposição (1928) de Wassily Kandinsky, propus que acompanhássemos primeiro partes do texto-guião que dá forma a essa obra para palco, seguindo-se o visionamento de alguns quadros da sequência cénica reconstruídos.
Existem em arquivo no Centro Georges Pompidou em Paris todos os desenhos e aguarelas que deram origem à sequência em movimento que tivemos oportunidade de visionar.
À época Kandinsky solicitou a Felix Klee, filho de Paul Klee e aluno da Bauhaus, que o apoiasse na elaboração de alguns esboços para cena e na própria criação cénica, como foi o caso do Quadro XV – A cabana de Baba Yaga. Felix Klee foi assistente de Kandinsky na realização desta obra no Teatro de Dessau em 1928.
Verificámos então que Kandinsky escreveu uma partitura plástica intercalada com a informação retirada, compasso a compasso, da partitura musical de Mussorgsky. Esta informação é apresentada ao leitor nas primeiras linhas do documento, exprimindo-se desse modo a metodologia seguida pelo artista na escrita documental. A apropriação da partitura de Mussorgsky tem para além do mais a presença do conhecimento científico, dado que Kandinsky estudou música e tocava primorosamente piano e violoncelo.
Não é portanto surpreendente que o cruzamento entre a música e as suas especificidades (ritmo, cadência, velocidade, acentuação, repetição, crescendos e diminuendos, etc.) e a criação plástica cénica alcancem uma simbiose da qual poderiamos não estar à espera.
A ideia de profundidade/profundo, por exemplo, mencionada por Kandinsky algumas vezes, pressupõe o entendimento da relação parcelada da composição como preenchimento do espaço e com base na organização de todos os elementos que a constituem. A criação da tridimensionalidade na maior parte dos quadros só existe porque é trabalhada a profundidade através dos jogos de luz e sua ausência. É assim que chegamos à sequenciação dos objectos em movimento e repouso na construção de cada quadro. Ao contrário do que acontece no âmbito da obra plástica e plástica-cénica, a representação da profundidade em música socorre-se normalmente de uma distinta linguagem (tons e tonalidades graves, uso do temperamento, cadência e ritmo em diminuendo, por exemplo) que no presente caso adquire total clareza para o ouvinte sem que este tenha de ser sujeito a registos díspares e atónicos quer na música quer na representação cénica. Apesar disso, a recepção da primeira e única representação desta obra não animou o público presente.
Em breve nota relembro o capítulo Empatia da obra de Giovanni Frazzetto anteriormente recomendada.
Relembro também que Kandinsky defende que o que importa mesmo é o conteúdo da obra na sua integridade e integralidade. A diferenciação das formas pode até enriquecer o resultado final contribuindo na sua óptica para uma síntese das artes.
Consideremos que é este o caso. Mussorgsky já tinha morrido em 1891. Mas a sua música era conhecida e apreciada por toda a Europa. O gesto de homenagem de Kandinsky ao seu conterrâneo e igualmente a Viktor Harmann é alvo de uma iniciativa externa suplementar e decisiva – a obra cénica Quadros de uma Exposição é uma encomenda do Teatro de Dessau ao artista. Pela primeira vez o pintor russo tem a oportunidade de experimentar a relação directa com oa cena. Após ter escrito 14 Composições para Palco e nenhuma ter sido encenada/dirigida, a oportunidade que se avizinha tem de ser agarrada com ambas as mãos, em sentido literal, mas também como reconhecimento de dimensão artística até então publicamente desconhecida. Acresce dizer que na altura da estreia desta Composição para Palco, esboços, desenhos e telas de preparação para Quadros de uma Exposição foram exibidos no foyer do teatro.
Apesar desta dimensão projectiva e de publicitação da sua obra, o trabalho de Kandinsky na criação de Quadros de uma Exposição pauta-se por um processo descritivo minucioso, por vezes parecendo que ele se está a dirigir a si próprio.
Ao olharmos para este objecto artístico (apesar de descritivo é um objecto artístico na forma básica!) teremos de reconhecer que as suas características o inserem na categoria de multimodal. Sem ser formalmente uma partitura musical, Quadros de uma Exposição (versão para palco) desenvolve um registo ao longo dos diferentes quadros com uma intencionalidade próxima da escrita de uma partitura pictórica. Os desenhos existentes corroboram esse propósito. Dessa partitura emana a convergência do desenho e da pintura, estabelece-se a presença de um artesanal desenho de luz e da sua relação com a respectiva sombra/ausência, escolhem-se tecidos com qualidades adequadas, montam-se os quadros à vista do espectador mas também do leitor, tendo ambos acesso a todo o processo.
O acto composicional é essencialmente um gesto poiético, sempre pronto a criar uma dimensão poética visual, por vezes crítica, humorística também, em cada conjunto de imagens que traduzem a história fenomenológica de um processo artístico a seis mãos.
A russissidade desta experiência terá sido para Kandinsky um factor emocionalmente relevante. Em 1928 já o professor da Bauhaus obtivera a nacionalidade alemã. Em 1933 iria optar pela nacionalidade francesa. Oficialmente despedido de ser russo, o pintor nunca mais veria torrão natal.
Reenvio o documento da 14ª composição para palco com alguns sublinhados. Não vou entrar em explicações que a releitura do documento pode enunciar. Afinal os alunos são argutos.
Concluimos a nossa aula com a apresentação de uma série de exercícios cénicos concebidos por Oskar Schlemmer e recriados pela coreógrafa Margarete Hasting e seus bailarinos. Foi depois apresentada uma outra sequência em registo original de época.
DVD visionado
Bühne und Tanz | Stage and Dance – Oskar Schlemmer, Edition Bauhaus, 27 min., Objecto fílmico reconstruído por Margarete Hasting (1969). Língua alemã, língua inglesa na legendagem inicial de cada coreografia, 2014.
Endereços electrónicos sugeridos
https://www.bauhaus100.com/the-bauhaus/people/masters-and-teachers/oskar-schlemmer/