Estruturar arte cénica abstracta

10 Fevereiro 2020, 14:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

FEVEREIRO                               2ªFEIRA                                       3ª AULA

 

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1. Grandes foram a inquirição e a inquietação suscitadas pelo ensaio Sobre a Questão da Forma que Kandinsky escreveu em 1912[1] e a que continuou a referir-se ao longo de toda a sua vida. O uso da tradução portuguesa não nos deverá impedir de analisar, folheando e parando aqui e acolá, a obra que recebeu o ensaio na altura da sua escrita. Refiro-me ao Almanaque Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul) que Kandinsky editou com o pintor e amigo Franz Marc e onde a transversalidade imperou em muitos domínios do conhecimento especialmente no desenho, na pintura e na gravura, num cruzamento de tempos históricos e de geografias. Os géneros pictóricos apresentados ombrearam com os textos inclusos que iam do ensaio ao poema, da discussão teórica à partitura musical e que editava pela primeira vez a composição para palco O Som Amarelo da autoria de Kandinsky. A esta composição vinha agregado o ensaio Sobre Composição para Palco, no qual o artista defendia a ideia de que o conteúdo de uma obra de arte existe independentemente dos meios, das formas que lhe dão expressão. Defende ainda Kandinsky que a forma pode até estar correcta do ponto de vista exterior, o que não invalida que internamente ela não funcione e vice-versa. As premissas aqui sintetizadas permitem que se considere, na representação pictórica mas também na concepção cénica, que a unidade interior de uma obra pode perfeitamente derivar da dissimilitude exterior dos elementos que a constituem. A noção de obra de arte total ou a noção de síntese das artes vive exactamente da confluência de várias artes que agregam entre si um conteúdo ou conteúdos comuns tratados pelo que cada arte tem de específico.

2. Retomemos uma vez mais a obra Quadros de uma Exposição de Wassily Kandinsky, 1928 (a partir da obra musical homónima de Modest Mussorgsky, 1871)

A partir de uma iniciativa do então novo director do Friedrich-Theater de Dessau, Georg Hartmann (não confundir com o pintor Viktor Hartmann), Kandinsky é convidado a criar, em 1928, uma cenografia e figurinos para uma encenação muito especial e singular, cuja estreia ocorreu a 4 de Abril desse ano.

O projecto a que Kandinsky se dedicou propunha-se acompanhar, através de meios plásticos, uma das obras musicais mais populares do seu compatriota Modest Mussorgsky (1839-1881) que, em 1871, criara uma sequência de dez pequenas partituras para piano, dedicadas postumamente ao seu amigo e pintor Viktor Hartmann (1834-1873).

Com vista à realização deste primeiro e único trabalho para cena levado a cabo por Kandinsky e, contrariamente aos princípios teóricos sobre a síntese cénica abstracta enunciados em escritos anteriores, Kandinsky tinha de «compor» a partir de uma partitura préexistente que, reportando-se a um acontecimento – a visita a uma exposição – evitasse, segundo ele, os escolhos de uma mera composição programática, conseguindo antes encontrar „uma forma musical pura“[2] para as vivências suscitadas pela partitura de Mussorgsky.

A cenografia em 16 quadros concebida por Kandinsky operava como uma série de acontecimentos plásticos cénicos, criados através da ajuda de formas geométricas, cores, linhas e efeitos de luz, que no seu conjunto produziam movimento e integravam com um carácter meramente acessório a figura do „acteur“, sob a forma de uma marioneta humana ou uma figura do teatro de sombras.

Em cena, os 16 quadros constroem-se e desconstroem-se diante dos espectadores através da iluminação sucessiva das diferentes partes.  De acordo com testemunhas oculares este espectáculo foi apresentado com uma extraordinária diversidade (elementos mais atentos do público chegaram mesmo a referir a presença de pequenas intervenções pedidas de empréstimo a Oskar Schlemmer ou a Ludwig Hirschfeld-Mack, colegas de Kandinsky na Bauhaus).

O problema de Kandinsky não estava, porém, em conceber uma interacção de elementos originais, mas em fornecer um contraponto visual à composição de Mussorgsky, que não fosse uma ilustração („pintura sob programa“), nem um mero sublinhar da partitura, mas antes uma „sonoridade abstracta“ com capacidade para estabelecer interligações e ao mesmo tempo interagir na criação de modo autónomo, articulando-se com precisão no movimento musical.  Para alcançar este objectivo, o artista cénico propunha-se:

 

„1) criar as formas em si, elas mesmas portadoras de autonomia;

2)   Associar a seguir as cores sobre as formas;

3)   juntar a estas a cor de iluminação (Beleuchtungsfarbe) para criar pintura com profundidade;

4)   desenvolver o jogo autónomo da luz colorida;

5)    produzir construção articulada de cada quadro com a música e, se necessário, a sua desconstrução.“[3]

 

Fonte informativa investigada: Jessica Boissel (Hrsg.), Wassily Kandinsky – Über das Theater, Du Théâtre, O Teatpe, Kö«ln, Dumont, 1998, p. 291.


[1] KANDINSKY, Wassily 1998, Sobre a Questão da Forma, Da Compreensão da Arte, A Pintura como Arte Pura, Conferência de Colónia in: Gramática da Criação, tradução de José Eduardo Rodil Lisboa: Edições 70, pp. 13-37.

[2] Wassily Kandinsky, in: Das Kunstblatt, XIV, 1930, S. 246.

[3] Ibid.