"Sobre o cinema 'como uma arte de palco'
10 Abril 2020, 15:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
Bom dia,
Segue o sumário da aula de 10 de Abril: Visionamento comentado de filmes e outras obras de László Moholy-Nagy, seguido de discussão sobre cinema, transdisciplinaridade, fotografia, pedagogia e artes de palco, no âmbito do território teórico-prático explorado e desenvolvido na Bauhaus.
- Aqui segue bibliografia relacionada (toda compilada num ficheiro WeTransfer): https://we.tl/t-uaoldO65fL
Atlas of Emotion, de Giuliana Bruno (o primeiro ponto - Site Seeing: The Cine City - do primeiro capítulo - Arquitecture - é o tal que referi ao prof. Alexandre tratar-se de uma especulação sobre um sentido háptico (em que o tacto é associado à visão e audição) especialmente desenvolvido cinematograficamente pelas Sinfonias Urbanas. Já li o livro há algum tempo e estive a reler esse capítulo depois da nossa aula e, curiosamente, reparei agora que o Moholy-Nagy e o filme que dele vimos são mencionados brevemente, como uma espécie de antecâmara para uma análise mais extensa do Homem da Câmara de Filmar, do Vertov, esse que quase chegou a ser o filme proposto para discutirmos na terceira e última sessão).
Ensaio sobre a fotografia, de Vilém Flusser (numa edição mais recente que desconheço).
Para a Maria João, que falou de paisagem como potencial produto cognitivo e simultaneamente pedagógico, não podia deixar de recomendar a leitura de um texto essencial de Georg Simmel, Filosofia da Paisagem (o qual me parece falar muito mais de cinema que muitos textos escritos durante o séc. XX sobre cinema).
The Theater of Bauhaus, vários (Ed. Walter Gropius), onde podem encontrar o texto do Moholy-Nagy na pág. 49, e que talvez possa servir de ligação às próximas leituras recomendadas do Alexandre.
What is Cinema? de André Bazin (Vol. I e II). Tendo sido abordados alguns conceitos deste autor, pareceu-me importante acrescentar esta compilação de textos e ensaios do mesmo reunidos num famosíssimo livro. Aproveito para recomendar o texto Theater and Cinema, no Vol. I, pois nele encontram-se algumas das mais importantes entrelinhas de antecipação sobre a forte ligação interdisciplinar entre Teatro e Cinema (que, por outra via, me parecem ir dar ao mesmo lugar a que alguns pressupostos do texto do Moholy-Nagy também nos levam), que no futuro ainda muito darão que falar (o Artista Alexandre Pieroni Calado que no-lo diga de sua justiça).
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Sobre o Cinema como uma "arte de palco", expressão essa que nunca me tinha ocorrido e que devido as estas aulas me apercebi poder ser muito exacta para abarcar muitas das ilações que carrego comigo sobre o assunto, permitam-me alongar o meu raciocínio com um pequeno episódio anedótico, seguido de outras ilações, que talvez ajuda a sintetizar algumas ideias discutidas:
Há um centro comercial em Lisboa, o El Corte Inglês, cujas salas de cinema são famosas entre os cinéfilos por permitirem que depois de sairmos de uma sessão possamos entrar noutra à socapa, noutras salas contíguas, sem voltar a passar pelos revisores de bilhete. Um dia, eu e um amigo entrámos numa segunda sessão (para a qual não pagámos bilhete, portanto). Antes do filme começar, durante os trailers e publicidade, um funcionário veio verificar se havia alguém na sala, visto que não havia ninguém na sala para além de nós. A sala registava zero bilhetes comprados no sistema, portanto. Ele perguntou-nos "vocês compraram bilhete para esta sessão?". Nós respondemos que não. Mas ele não nos expulsou... pensámos nós que estaria ele ciente de que isto que fizemos era uma prática habitual naquelas salas, deixando-nos lá estar. Eu e o meu amigo achámos a boa vontade de louvar e estranhar. No entanto, o mistério seria resolvido: após 20 minutos do início do filme, a projecção foi interrompida e as luzes acenderam-se. O mesmo empregado entrou na sala e começou a limpá-la sem nos dar satisfações. Porquê? Porque, regra geral, todas as sessões em salas comerciais passam as cópias até 20 minutos de duração para o caso de alguém até lá comprar bilhete. Ou seja, regra geral, mesmo que ninguém compre antecipadamente bilhete para a sessão (não só no El Corte Inglês, mas na maior parte dos cinemas comerciais e até mesmo na Cinemateca), os filmes são projectados para ninguém durante 20 minutos.
Serve esta anedota para agora pegar numa questão levantada pelo Alexandre, que perguntou algo como: "na hipótese de ser uma arte presencial, se o cinema acontece se ninguém estiver a ver?".
E responder-lhe dizendo que, nesses casos, o cinema acontece durante 20 minutos (esteja lá alguém ou não, porque o que conta é a possibilidade).
Enquanto arte de palco, o cinema é uma arte do encontro e do engendramento da sua possibilidade. A tónica é aqui tão colocada do lado da arquitectura como das imagens que ela envolve e que decorrem no seu interior. A arquitectura pode ser a de uma sala num centro comercial, uma cinemateca ou até uma sala de aula. As imagens que ficam connosco, no nosso corpo ou memória colectiva, são resquícios desses encontros potencialmente ocorridos nesses espaços pensados para esse efeito. As imagens são "nómadas" (expressão de Hans Belting, historiador de arte) que transitam desses lugares pensados para serem Cinemas e passam a habitar virtualmente outro 'suporte', o nosso corpo, na eventualidade de serem transportadas para outro palco qualquer (uma nova projecção noutra sala, um dvd, um texto, uma conversa), isto é, outro lugar qualquer onde se engendre nova possibilidade de encontro. É assim que as imagens sobrevivem durante séculos - ou não mais que os segundos que as demoramos a (scroll) olhar.
Nesse sentido, não somos assim tão diferentes dos filmes que transportam as imagens; tal como as películas ou ficheiros que as têm em si impressas, somos meros passadores tatuados pelas mesmas. Lição esta que Jean-Luc Godard conhece há muito tempo e que pôs em prática, revelando imagens tatuadas no seu corpo na sua Histoire(s) du Cinéma.
Reduzir o Cinema aos filmes é não ter em conta tudo o que actua na composição de uma cena e tudo o que a ela se segue (ou melhor dizendo: que a ela se pode seguir). Não é por acaso que, olhando para trás, o momento que de facto "inaugurou" a História do Cinema, para além de todas as suas difusas e heteróclitas invenções durante quase meio século antes, foi algo que os irmãos Lumière intitularam como "A Primeira Sessão". Nela, Dez 'tomadas de vista' sobre o mundo, criteriosamente seleccionadas e ordenadas (de entre já muitas outras filmadas, como por exemplo a famosa chegada do comboio à estação, que aqui não estava incluída), mostravam aos espectadores as várias possibilidades que esta arte era capaz de enformar e elaborar (deixo o link para esse original e riquíssimo alinhamento: https://www.youtube.com/watch?v=oxPUyYvt3Kg).
George Méliès estava nessa primeira sessão. Foi ele quem relatou que um grupo de pessoas ficou sobretudo fascinado com o subtil movimento das ervas em segundo plano, desfocadas, no pequeno filme sobre o pequeno almoço de um bebé. Era a prova de que o mundo, para além do que era encenado em primeiro plano, estava de facto presente enquanto evidência ao fundo da imagem. Foi também esse efeito de real - que, para os mais atentos, resulta sempre de um cruzamento entre o plano de encenação e o plano da evidência - que convenceu o genial Méliès a mais tarde renovar as suas artes de palco - e não a trocá-las, como normalmente se diz -, através da interacção entre narrativas literárias, truques de magia e uso da câmara de filmar com as suas primeiras operações de montagem. O resto é História.
Costuma dizer-se que o cinema de George Méliès "estava ainda demasiado agarrado à linguagem do teatro e que só mais tarde o cinema viria a desenvolver a sua própria linguagem narrativa". Não sei se quem assim pensa sabe menos de teatro ou de cinema. Que o diga Manoel de Oliveira, fã devoto de Méliès, que achava que "o cinema é [e que sempre foi] o registo audiovisual do teatro". Uma arte do encontro (e da sua possibilidade), portanto.
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Agradeço os conteúdos enviados pela Professora, pela Andrezza e pelo Marcondes. A seu tempo responderei com uma partilha da minha autoria.
Até breve e boa páscoa,
Pedro Florêncio