Fírmico, Jerónimo e Claudiano: Christianus vs Ciceronianus. A revolução da estética: Deus e a cultura.
5 Abril 2018, 14:00 • Rodrigo Furtado
1. Contrastes e mundividências
a. Cristianismo e cultura clássica: Christianus non Ciceronianus?
Jerónimo, Epístola XXII a Eustóqiuo, 30: ‘Há já muitos anos, embora tivesse, por causa do Reino dos Céus, cortado todas as relações com a minha casa, os meus pais, irmã, parentes e, o que é mais penoso do que isto, com o hábito dos lautos banquetes [...], não podia passar sem a biblioteca que coligira para mim, em Roma, com grande zelo e trabalho. Assim eu, infeliz, antes de ler Cícero, jejuava. Depois das ininterruptas vigílias nocturnas [...], tomava Plauto nas minhas mãos. Se porventura, caindo em mim, começava a ler um profeta, a linguagem rude horrorizava-me [...].
Quase a meio da Quaresma, uma febre, infundida nas minhas entranhas mais recônditas, invadiu o meu corpo esgotado e, sem qualquer descanso [...], devorou os meus infelizes membros ao ponto de eu mal permanecer preso aos meus ossos. [...] De repente, arrebatado em espírito, sou arrastado até ao tribunal do Juiz, onde era tanta a luz e tanto o brilho oriundos do esplendor dos que se encontravam de pé ao meu redor, que, lançado por terra, não ousava olhar para cima. Interrogado acerca da minha condição, respondi que era Cristão. Mas aquele que presidia disse: «Mentes. És Ciceroniano, não Cristão; «onde estiver o teu tesouro, aí está também o teu coração» [Mat. 6, 21].
Calei-me de imediato e, entre vergastadas – efectivamente, tinha ordenado que eu fosse flagelado – era ainda mais torturado pelo fogo da minha consciência, reflectindo para comigo naquele versículo, ‘no inferno porém, quem te louvará?’ [Ps. 6, 6b]. Comecei então a gritar e a dizer entre lamentos: ‘Tem piedade de mim, Senhor, tem piedade de mim’ [Ps. 56, 2]. [...] Fui libertado, voltei à superfície e, perante a admiração de todos, abro os olhos, inundados por uma tamanha chuva de lágrimas que convenciam da minha dor os incrédulos. [...] A partir de então li os livros divinos com um empenho maior do que aquele com que antes tinha lido os livros dos mortais.
b. Educação e novos desafios.
i. A educação clássica : o triuium.
ii. As ‘escolas’ cristãs de Alexandria e de Antioquia no século III; o direito dos Cristãos poderem aceder à educação;
‘Quero pedir-te que extraias da filosofia dos Gregos o que pode servir como um plano de estudo ou uma preparação para o cristianismo, e da geometria e astronomia o que servirá para explicar as Sagradas Escrituras, para que o que todos os filhos dos filósofos costumam dizer sobre geometria e música, gramática, retórica e astronomia, como companheiros auxiliares da filosofia, possamos dizer nós, sobre a própria filosofia, em relação ao cristianismo. Talvez algo deste tipo esteja suposto no que está escrito no Êxodo, da boca de Deus: que ele ordenou aos filhos de Israel que pedissem aos seus vizinhos e àqueles que habitavam com eles, vasos de prata e ouro e vestes, de modo a que, ao espoliarem os egípcios, eles pudessem ter material para a preparação das coisas que pertencem ao serviço de Deus’. (Orígenes, Carta a Gregório)
‘Não devemos errar em defender que todas as coisas necessárias e proveitosas para a vida nos vieram de Deus, e que a filosofia foi mais especialmente dada aos Gregos, como uma aliança especial com eles - sendo, como é, um degrau para a filosofia que existe de acordo com Cristo’. (Clemente de Alexandria, Stromata 8)
‘Apresentarei os melhores contributos dos filósofos dos Gregos, porque tudo o que há de bom foi dado aos homens de cima por Deus '”(João Crisóstomo, Capítulos Filosóficos, Prefácio).
iii. A recusa da cultura clássica: não interessam as letras nem a argumentação, mas apenas a fé – o sermo piscatorius (Atanásio de Alexandria, Vita Antonii, 1.80).
c. A recuperação de um passado.
i. Os Saturnalia de Macróbio: ambiente simposiástico que pretende recuperar os modelos clássicos: discussão em torno de Vergílio;
ii. As edições de luxo autores antigos:
1. Tito Lívio patrocinada por Símaco e por Nicómaco Flaviano em 401;
2. As edições de luxo de Vergílio: o Virgilius Mediceus (Firenze, Laur. 39.1 + Vaticano, lat. 3225) – a subscrição de Túrcio Rufo Aproniano Astério (f. 76).
3. Os comentários: Sérvio, Tibério e Élio Donato.
d. Tradição literária e novos conteúdos : pseudomorfose cultural.
i. Claudiano : um poeta egípcio em Roma ao serviço de Estilicão. O maravilhoso pagão como adereço.
ii. A oratória clássica ao serviço da religião: João Cristóstomo, aluno de Libânio;
iii. Juvenco e os Euangelii libri ; Proba e o centão de Vergílio In laude Christi; Sedúlio e o Carmen paschale.
2. Cristianismo e religiões não cristãs: o exemplo de Fírmico Materno.
a. O Cristianismo como padrão cultural: ser cristão é ser como o imperador.
b. A argumentação a favor da proibição dos rituais não cristãos. Um combate não apenas contra o politeísmo. Um combate pela racionalidade e a cultura: Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo.
'Falta pouco para que o mal seja definitivamente proibido e afastado pelas tuas leis e para que o contágio mortal da idolatria do passado possa perecer’ (Firm. err. 20.7).
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- A proibição de construção de novos templos por Constantino. O carácter ambíguo das atitudes imperiais:
i. a manutenção dos rios cívicos;
ii. os templos da deusa Tiquê (Thychê) e dos Dióscuros em Constantinopla;
iii. a negligência: o cada vez menor evergetismo religioso não cristão.
“Imaginei na minha cabeça o tipo de procissão que seria, com um homem a ter visões sonho: animais para sacrifícios, libações, refrões em honra do deus, incenso e os jovens da cidade a rodear o santuário, com as suas almas adornadas com toda a santidade e eles próprios vestidos com vestes brancas e esplêndidas. Mas quando entrei no santuário, não encontrei incenso, nem um bolo, nem um animal para sacrifício. Nesse momento fiquei espantado e pensei que ainda estava fora do santuário e que estavam à espera de um sinal meu, dando-me essa honra por eu ser o sumo pontífice. Mas quando comecei a indagar que sacrifício a cidade pretendia oferecer para celebrar a festa anual em honra do deus, o sacerdote respondeu: 'Trouxe comigo da minha casa um ganso como uma oferenda ao deus, mas a cidade desta vez não fez preparativos.” Juliano, Misopogon (sobre o santuário de Apolo em Dafne, perto de Antioquia).
- Edicto de Constante (ou Constâncio II) (341): cesset superstitio, sacrificiorum aboleatur insania (cod. Theod. 16.10.2): a proibição dos rituais da religio.
i. a proibição aos cristãos de participarem nos ritos e sacrifícios cívicos (321 d.C.);
ii. A proibição constante dos sacrifícios em Roma ao longo do século IV;
iii. Notícias esporádicas de conflito; mas ausência de uma política consequente até à época de Teodósio; mesmo depois, não há uma perseguição massiva;
iv. Visita de Constâncio II a Roma (357): respeito pelos templos da cidade: ao ponto de ser ele próprio apresentado por Símaco como modelo para Valentiniano II;
e. Teodósio e o edicto de 391.
i. A extinção do fogo do Templo de Vesta e a proibição das Vestais. O de uirginitate de Ambrósio de Milão;
ii. A proibição da religião familiar;
iii. O abandono/destruição dos templos?
1. Números
Gália: 2,4% templos destruídos;
Norte de África: apenas destruições em Cirene;
Ásia Menor: apenas um exemplo de destruição;
Grécia: apenas um exemplo de destruição (pelos Godos de Alarico);
Itália: apenas um exemplo de destruição;
Britânia: três exemplos de destruição;
Egipto: sete exemplos de destruição;
Síria-Palestina: vinte e um exemplos de destruição
TOTAL: 43 destruições
2. O caso de Serapeum de Alexandria:
a. não havia biblioteca;
b. Teófilo de Alexandria retira de um templo abandonado objectos sagrados;
c. Reacção pagã: tomam o Serapeum, torturam e crucificam cristãos;
d. Acabam por ser expulsos e os líderes, que eram filósofos neo-platónicos, perdoados por Teodósio;