Ainda A. J. Saraiva, Filhos de Saturno

18 Março 2020, 14:00 Ernesto José Rodrigues

Contra a corrupção ‒ conducente à crise moral, política, económica ‒ se alevantam a agudeza do ensaísta e a aspereza do manifestante nos textos 40 e 42, saldadas contas no mais forte 38, de Filhos de Saturno. Os «acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril» resumem-se, para Saraiva, num díptico: a descolonização «que não houve» ‒ «a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir» ‒, e a «liquidação do antigo regime». Disso trata em “O 25 de Abril e a História” (Diário de Notícias, 26-I-1979), que, face às ondas de choque, motivou dossiê de Raiz e Utopia, 7-8, Outono / Inverno de 1978: 40-55. Esse duplo número recolhe conversa entre Saraiva e Eduardo Lourenço, incluindo partícipes no debate, a que se seguem artigos de Maria Belo e Joaquim Manuel Magalhães suscitados pelo incendiário artigo. 

Quanto à descolonização, o PCP, infiltrado num exército já sem hierarquia pela insurreição dos capitães, fez o jogo da URSS; mais, dirá no agitado debate de Raiz e Utopia, em que percebeu desfavor, mesmo hostilidade: «[…] o povo português não participou na descolonização.» (p. 42) Quanto ao ex-regime, tratava-se de julgá-lo, a tempo, em três frentes: como «pântano de corrupção», no «terror policial», nos «crimes de guerra» ultramarinos. Conclusão: ficou tudo em águas de bacalhau.

A passagem ao pluripartidarismo e ao que, em missiva de 1976, eram «as principais conquistas políticas democrático-liberais subsequentes ao 25 de Abril: liberdade de imprensa, eleições verdadeiras, abolição de quaisquer Pides, etc., etc.»[1], não fez esquecer «A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão»; os efeitos, que discrimina em vários quadrantes da vida nacional, estavam à vista de todos, pelo que «falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral». Depois do “Cravo de Maio flor da liberdade”, em 1974, irrompem desengano e autocrítica, numa dureza que retorna no texto 53, ao irmanar com excessiva facilidade o 5 de Outubro e o 25 de Abril[2]: «Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.» Mas ainda é possível o resgate… E quem julgar que se trata de um libelo tardio leia carta a Óscar Lopes de Maio de 1974 (p. 386-387), onde trabalha hipóteses sobre o «problema colonial». 

Quando A. J. Saraiva falece, a Europa era já outra, e, mais do que ela, o mundo, sem os dois blocos que ainda circunscrevem o pensamento dos anos 70. Nesta medida, várias crónicas têm um imperecível valor documental e marcadamente ideológico. Tinham desaparecido entidades como URSS, Checoslováquia, República Democrática Alemã, ou sugestões eurocomunistas, e, com excepção de uma Ásia pontual, desapareciam formulações como centralismo democrático, ditadura do proletariado, embates entre cristãos e marxistas, luta de classes. Nem tudo se apagou, porém; e nem esses conceitos devem ser atirados para debaixo do tapete.

Apreendida uma caracterização nacional segundo A. J. Saraiva, talvez se perceba melhor o tom destas crónicas saturnianas ‒ um pleonasmo, se o discurso daquelas é devorado, como nós, pelo tempo, ou pai Saturno; pleonasmo menos evidente, quando entreluz melancolia, até ao gume do sarcasmo e da contradição toldada de desespero ‒, que retomam, na limpidez de raciocínio, preocupações maiores do, agora, também colunista e polemista, lastreado pela História e pela Filosofia política.


[1] Carta a Óscar Lopes, ed. cit.: 395-396.

[2] O mesmo Saraiva se contradiz na comparação: «O 25 de Abril não foi um golpe organizado por pessoas conscientes de que era preciso aplicar novas ideias, novos modelos [,] mas foi uma revolta de capitães que queriam acabar com a guerra fosse como fosse. Lembro só a diferença que há entre esta revolução e o 5 de Outubro. Essa foi uma revolução feita por chefes políticos, com planos – bons ou maus, não interessa aqui. O 25 de Abril aconteceu como uma espécie de deslaçamento.» (Raiz e Utopia, p. 41-42)