Elementos fundamentais da cultura portuguesa
27 Março 2020, 14:00 • Ernesto José Rodrigues
Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, de Jorge Dias, devem ser vistos, antes de mais, no quadro do Estado Novo ‒ representativo de um I Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (Washington, 1950), enquanto retrato antigo, mas não menos polémico e fecundo.
Desde os nossos primórdios, onde quer que os situemos – na Antiguidade, com suas colónias de fenícios, normandos, celtas, romanos, até aos suevos, visigodos e árabes –, a influência do exterior é inegável e criadora de antinomias. Propiciando diversidade cultural, aquela alargou-se em conquistas políticas descendo do Norte celta e germânico ao Sul mediterrânico e berbere; com a crescente maritimização, e sucessiva litoralização do país, soltou-se para uma diversidade geográfica global que ainda hoje nos interpela. A Expansão descobre, acha, encontra e, tolerante, no seu espírito mercuriano, aproxima a «gente ousada» camoniana (V, 41): «[…] Portugal é menos um país do que um povo em movimento, pois que aquilo que melhor o define é a Expansão. É essa a palavra-chave, sem a qual nunca se chegará a compreender a alma portuguesa. (Oliveira, 1944: 136) Quais os traços de personalidade daí decorrentes?
O Português é, primeiro, um «misto de sonhador e de homem de acção» – tanto cabe D. Sebastião como acreditar em jogos de azar; o que E. Lourenço contesta –, devotado a uma cultura de idealismo, emoção – com predomínio «sobre a paixão» (F. Pessoa, 1979) –, de imaginação – com predomínio «sobre a inteligência» (F. Pessoa, 1979), sem reflexão, donde, ausência de filósofos, místicos (mas não de espiritualidade, acrescente-se) e pensamento abstracto. Os gramáticos e doutrinadores dos séculos XVI-XVII elogiavam este tipo de pensamento; quanto a filósofos, muito boa gente discorda…
O desprezo do mesquinho, utilitarismo e conforto não obnubila o prazer da ostentação, seja riqueza ou luxo. Com temperaturas amenas, o interior das nossas casas é mais frio e desconfortável do que em regiões polares; o querer parecer vai de um consumismo inconsciente ao risco de se endividar ou aumentar o malparado bancário só por um capricho ou indissimulada vaidade. Somos, diria E. Lourenço (1978), pobres com mentalidade de ricos, vivendo, indivíduos e Estado, acima das posses, sem esconder a humildade do subalterno e resignado, do indiferente e pouco amável, caracterização que Jorge Dias esquiva.
Afectivo, de sentimento à flor da pele (e não acima da razão, se esta há muito foi ofuscada), o Português derrete-se, coração aberto, em bondade, empatia – «aquela capacidade franciscana, que Gilberto Freyre atribui aos portugueses, de amarem todas as coisas […]» (Oliveira, 1944: 31) – e, dirá o século XVII espanhol, ‘amorosidad’. Os exemplos fuzilam, desde a lírica medieval; e mesmo a tourada sem sangue na arena é mostra de afectividade. (Hoje, esta conversa fiava mais fino.) Não se nos chegue, todavia, a mostarda ao nariz; e, se crime existe, é passional, não vampírico, nem canibal ou com outras modulações.
A religiosidade vai pouco além da fachada milagreira, e, como a ermida singela ou igreja de porte, é simples, tranquila, acolhedora. Algum «panteísmo sentimental» quase só nos Jerónimos.
A adaptabilidade («instintiva», diz F. Pessoa [1979]) e capacidade assimilatória será duplo traço logo reconhecível, também em E. Lourenço (1988: 14; ainda assim, cria a nuance de «aparência de ductilidade»), que os malévolos reduzem a imitação, sendo certo que, desde o ombro estrangeiro originário, o macaqueio é grave infiltração: para E. Lourenço, «somos um país fascinado em grau patológico pelo estrangeiro» (1976: 23), o que conduz a «uma descentragem permanente […] da nossa própria realidade» (p. 77). Fidelino de Figueiredo ( Últimas Aventuras, cit. em Oliveira, 1944: 163) é duro, a esse respeito: «Somos vaidosos como indivíduos, mas, ao mesmo tempo, estamos sempre prontos a declarar-nos inferiores como nacionais, pois que expontâneamente reconhecemos precisar das lições do Estrangeiro, ao contrário dos espanhois, que só na Espanha se inspiram.» A imitação, ainda que fosse poliglota, não enquadraria a tolerância bem entendida [1] ou os efeitos e frutos da miscigenação. Há adopção e adaptação, mas não é por isso que se é «cosmopolita».[1] Não a moleza da democracia, de um consensualismo formal, preguiçoso, quando não forçado. «“O país de Herculano” não é outra coisa do que aquele onde a tolerância, sem ser uma atitude espiritual e nata, que nunca o foi, em parte alguma, é, como a boa educação na ordem privada, uma forma interiorizada do respeito do outro como ser pensante e livre. Por motivos históricos e, sobretudo, por contingências culturais que Herculano explicou melhor do que ninguém, […] Portugal, mesmo o da “antiga liberdade lusitana”, não foi precisamente um país de tolerância.» Eduardo Lourenço, “O país de Herculano”, Público (Lisboa), 3-IX-1993. M. Duarte Mathias (1980), após um traço do português como «verdadeiro poliglota do sentimento», questiona: «A tão apregoada tolerância do Português não resultará afinal da sua falta de convicções? (Com efeito, para o incrédulo, por definição, não há hereges.)» Também pode ser expectativa de uma reciprocidade, salvaguarda, defesa, prevenção, e tudo isso, acrescenta Mathias, que denota fraqueza.