Feições persistentes da personalidade cultural portuguesa
18 Março 2020, 14:00 • Ernesto José Rodrigues
Vejamos, em vez da ‘forma cultural’ tocada no colóquio portuense de 1993, “Algumas feições persistentes da personalidade cultural portuguesa” (32007: 75-107), segundo António José Saraiva, reforçado por Filhos de Saturno (32015).
Ao abordar “As épocas da cultura portuguesa” (32007: 109-153 [112]), sugeriu António José Saraiva quatro critérios: a perspectiva mítica; a relação entre topo e base, situando naquele a força económica e política, não forçosamente cultural; a nossa pertença «ao sistema cultural europeu-ocidental», que já fora somente peninsular, na tensão lusitana com o lá fora; enfim, «o valor para cada época do signo linguístico e, portanto, do próprio discurso», seja, o difícil convívio entre palavras e coisas (ou a realidade), quando somos seres discursivos, em que se joga a ideologia.
Face aos 54 textos reunidos em Filhos de Saturno[1], precedidos de um Prólogo ‒ tomando o sexénio pós-abrilino como etapa decisiva na construção democrática, para Saraiva, fracassada ‒, poderíamos enquadrá-los nessa quádrupla vertente, de acordo com os assuntos tratados, alguns dos quais citamos: Cinco de Outubro e República de 1910, D. Sebastião (indexado pelo título “Loucura e História”), Tecnologia e Progresso, Vinte e Cinco de Abril; Sociedade de abundância e de consumo, Capitalismo de Estado e privado, Pauperização; Cristianismo e Marxismo, Descolonização, Eurocomunismo, Leninismo, Multinacionais, Social-Democracia; Capitalismo, Cultura, Direita, Esquerda… Há outras maneiras de ler este volume: a) cronologicamente, de 14 de Janeiro de 1974 a 26 de Outubro de 1979: nesse caso, o Prólogo, de 13 de Janeiro de 1980, fica para o fim, síntese e cúpula; b) pelo índice, seleccionando de acordo com a nossa mundivisão; c) por temas, seguindo a Tábua, alfabeticamente.
Salvo três inéditos de 1974 e um quarto de 1977 [“A seta e o anel (Notas sobre o ‘Progresso’)”, o mais longo, notabilíssimo, nascido de palestra), a cinquentena foi publicada no Jornal do Fundão, República, Diário Popular, Vida Mundial, Critério e, sobretudo, no Diário de Notícias. Outros teriam cabimento, entretanto coligidos por Maria José Saraiva (2004). Justificava-se, nesse alinhamento de época decisiva para nós, e quando mais interveio o Historiador da Cultura, que entrassem os seguintes: «O essencial e o acessório (a propósito de Soljenitsine)», Diário Popular, 18-III-1974; «Economia e democracia política», Vida Mundial, 9-I-1975; «Não se salvou o nome do país nem a honra das Forças Armadas», O Primeiro de Janeiro, 25-II-1979; «A diplomocracia», Diário de Notícias, 31-VIII-1979 (sucedâneo do texto 32, de 10-XI-1978); e, da quinzena de artigos no Diário de Notícias em 1980, teria sido bom fechar com «Política» (1-III-1980), síntese do que deve preocupar governantes e governados (estes confundem ‘governantes’ com ‘políticos’), exemplar de como Saraiva trabalha a relação entre palavras e coisas e argumenta singela mas poderosamente: se, como se julga, a política fosse «a arte de bem governar a cidade», então, «não haveria diferença entre política e administração»:
A arte de bem governar é a arte de bem gerir e administrar os seus recursos em proveito de todos os membros da comunidade, de manter a ordem necessária para a vida em comum, etc. Se a política fosse isso, um poder paternal seria o melhor governo, e o melhor político seria o melhor administrador, o que é falso com toda a evidência. O bom administrador percebe de coisas, mas nem sempre de pessoas. […]
A política é um jogo de paixões, de um certo tipo de paixões. […] [É] o estado social resultante das paixões em jogo.
Que paixões? Aqui temos de distinguir os protagonistas e o coro, os manipuladores e os manipulados. Os primeiros podem servir-se da política para satisfazer os seus fins particulares: […] Mas os que estão no coro e só têm voz passiva, esses são movidos por uma espécie de paixão pública e abstracta, como a paixão da igualdade, a paixão da justiça, a paixão da liberdade, a paixão «patriótica» ou tribal, etc. Os melhores políticos activos são aqueles que, em cada momento, sabem apostar na paixão dominante, por ser a de maior número ou por ser a mais dinâmica nas circunstâncias. Lenine jogou na paixão igualitária, Hitler na paixão tribal.
O «jogo de paixões» de Saraiva transcende o realismo cínico de Paul Valéry (1960: 947) ‒ «La politique fut d’abord l’art d’empêcher les gens de se mêler de ce qui les regarde. À une époque suivante, on y adjoignit l’art de contraindre les gens à décider sur ce qu’ils n’entendent pas» ‒, apelando à confluência, no mesmo indivíduo, de sábia administração das coisas e domínio pertinente da emoção colectiva.
Qual a importância, pois, deste olhar lustral de um grande pensador, vencido quadragésimo aniversário nostálgico dessa luminosa quinta-feira de 1974, que tantas esperanças deixou pelo caminho?
Na última semana de 1973, quando troca Amsterdão pelas férias do Natal em Paris, onde celebra 56 anos, A. J. Saraiva espelha indecisões:
Outro problema é decidir-me por um caminho de investigação. Continuo muito tentado pelo problema da relação entre língua e literatura. Mas também me fascina o estado dessa coisa particular que tem o nome de Portugal (a problemática dos meus artigos na Vida Mundial). Tenho a mitomania das grandes catedrais ‒ o que me levaria a continuar noutro estilo (como as catedrais românticas continuadas em estilo gótico ou até barroco) a História da Cultura. E estou indeciso quando o tempo urge[2].
A tripla frente ‒ investigação, Portugal, História da Cultura em Portugal ‒ está em vias de resolver-se, com a chegada de Abril. Ter assistido, em Lisboa, ao Primeiro de Maio fá-lo declarar: «Mas é claro que já não tenho nada que fazer aqui. Agora ainda me sinto mais exilado e quero voltar definitivamente.» A vida «controlada e computada» (p. 385) dos holandeses, contudo, serve-lhe de exemplo para tratar de tecnologia e suas perversões.
Desejando dar rosto novo e outra metodologia à História da Cultura em Portugal (3 vols., 1950, 1955, 1962), esse quinteto compõe A Cultura em Portugal. Teoria e História. Livro I. Introdução Geral à Cultura Portuguesa, cujo Livro II traz o subtítulo Primeira Época: A Formação (1991, 22007). Nos anos 60, julgou poder entrar pelo Barroco e períodos seguintes, revendo, e concluindo, a monumental História da Cultura em Portugal, esgotadíssima. Sobreveio a morte, em 1993; reeditar-se-ia, pois, o remanescente, já não revisto pelo autor. Assim, Leonor Curado Neves deu Renascimento e Contra-Reforma e Gil Vicente, Reflexo da Crise (2000); eu acrescentei As Navegações e as Origens da Mentalidade Científica (2011), fechando um quarto volume com O Humanismo em Portugal (2013). Não confundir o saldo final destes seis volumes com os dois de Para a História da Cultura em Portugal (1995-1996).
Vejamos, pois, desse Livro I, “Algumas feições persistentes da personalidade cultural portuguesa” (32007: 75-107), de modo a conjugar na imagologia epocal do autor os mais contingentes textos de Filhos de Saturno.
[1] De 1980, na Livraria Bertrand, há correcções pertinentes na minha edição (32015): passagem de controle a controlo, de massivo (e seus derivados) a maciço e reforço da pontuação.
[2] Carta de 24-XII-1973. Ver António José Saraiva e Óscar Lopes: Correspondência, 22005: 375.