Novos retratos: Aquilino Ribeiro e outros
3 Abril 2020, 14:00 • Ernesto José Rodrigues
Aquilino Ribeiro, no Guia de Portugal (“O Português”, 1924), coloriu-nos de «sociabilidade», e, paradoxalmente, inaglutinação; pior, libelou-nos insolidários:
[…] O português é o homem mais sociável deste mundo. […] Onde o português chega, há tertúlia; desenvolve-se a afabilidade; alarga-se o halo humano. […] Essa expressão “é muito dado” existe apenas na nossa língua. Com ela se traduz a despreocupada lhaneza, espírito de comunicabilidade, nenhum preconceito nem timbre na vida das relações. Axioma: de todos os europeus o português é o mais tratável. […] Não há que discutir: o português é o bicho mais adaptável do universo. […]
Com certeza que significa ânimo prazenteiro, […]. Representa ainda gosto de folgar; tendência para a irradiação; abandono – vá – aos impulsos do bem ou do mal, para o caso pouco importa; efuzibilidade [sic]; descuido; hábitos de mentidero; sentimento atenuado das responsabilidades; uma certa lassidão perante a vida e uma certa filosofia de lazzarone que se resume em considerar a luta como coisa tonta e vã perante a eternidade.
E por cima de tudo, a coroar estes sentimentos, […] uma grande simpatia humana.
Sendo o português sociável por excelência, na vida prática, para lá da boa intenção, é o mais inaglutinativo dos viventes. E porquê? Porque associação implica vontade, disciplina, sobretudo esforço a longo prazo, […]. Mas nesta aversão pelo associanismo o elemento de repulsa não é representado pelo amor da liberdade […]. É antes rebeldia aos vínculos morais, atonia perante o dever social, impropriedade do seu individualismo para tudo o que tenha carácter colectivo. Fraterno, já dissemos que o era, mas duma fraternidade de casa da malta, sem sanção nem obrigação, toda eventual e caprichosa, pois. E, ó paradoxo, […] é insolidário com o próximo. Neste particular, a História Trágico-Marítima constitui o pior requisitório que se poderia instaurar contra um povo.
Eduardo Lourenço (72010: 78) matiza o fundamento de Aquilino: «Os portugueses não convivem entre si […], espiam-se, controlam-se uns aos outros; não dialogam, disputam-se, […].» Marcello Duarte Mathias (1980) diverte-se:
Nessa altura ainda não compreendera que não há coisa que o Português mais deteste do que estar só – viver sozinho, viajar sozinho, almoçar sozinho, ter de engatar sozinho ou ir duas horas por ano sozinho ao cinema (é o suficiente aliás para ter enxaquecas e não conseguir ver o filme) faz-lhe perder o apetite e andar abatido.
De resto, quando assim sucede telefona desesperadamente a um amigo para se encontrar com ele, após o que os dois procuram outros amigos. Uma vez reunidos e em quantidade numerosa, vão juntos desperdiçar o resto do tempo que lhes sobra (outra grande e irreprimível vocação nacional) para sítios de preferência cheios de muita malta conhecida onde possa, novamente e todos juntos, avistar as caras familiares de outros tipos também em grupo e para ali perdidos a olharem de soslaio uns para os outros, falando a mesmíssima coisa que eles, ou seja, nada. A matar o tempo, à roda do vazio, per secula seculorum, como se a vida afinal não lhes pertencesse.
Vergílio Ferreira, escrevendo no pós-Abril, deita abaixo o edifício:
O Português é de si egoísta, disparatado, impulsivo, inconsciente, sem o sentido da medida, ignorante e fanfarrão, provinciano, campónio, sobretudo o da cidade, complexado, arranjista, trafulha, de uma esperteza saloia, fala-barato, arreeiro, malcriado, exibicionista, sem critério, desindividualizado, sem sentido de humor, sem finura, pascácio, parolo. […] E no entanto, simultaneamente, mas sempre dentro da insensatez, o Português é também generoso, chauvinista, hábil, de inteligência embora camponesa, audacioso, com um critério de honra escrupuloso, doce, amável, galhofeiro, cioso de si e o mais[1].
Lamenta que Portugal,
desde que começou a pensar-se, pensou-se sempre, não em função dele próprio, mas em função dos outros; não em função do que ele devia pensar de si, mas do que julgava que os outros pensavam dele e do que ele de si pensava. […] A nossa basófia [sic] congénita vem da necessidade de que se repare em nós. […] Pensar Portugal é pensá-lo no que ele é e não iludirmo-nos sobre o que ele é. Ora o que ele é é a inconsciência, um infantilismo orgânico, o repentismo, o desequilíbrio emotivo que vai da abjecção e lágrima fácil aos actos grandiosos e heroicos, a credulidade, o embasbacamento, a difícil assumpção da própria liberdade e a paralela e cómoda entrega do próprio destino às mãos dos outros, o mesquinho espírito de intriga, o entendimento e valorização de tudo numa dimensão curta, a zanga fácil e a reconciliação fácil como se tudo fossem rixas de família, a tendência para fazermos sempre da nossa vida um teatro, o berro, o espalhafato, a desinibição tumultuosa, o despudor com que exibimos facilmente o que devia ficar de portas adentro, a grosseria de um novo-rico sem riqueza, o egoísmo feroz e indiscreto balanceado com o altruísmo, se houver gente a ver ou a saber, a inautenticidade visível se queremos subir além de nós, a superficialidade vistosa, a improvisação de expediente, o arrivismo, a trafulhice e o gozo e a vaidade de intrujar com a nossa «esperteza saloia», o fatalismo, a crendice milagreira, a parolice. Decerto, temos também as nossas virtudes.» (p. 281)
Não enumera essas virtudes, para, sem funda reflexão histórica, voltar à «crença milagreira, porque toda a nossa história é um jogo de acasos. Nós não criámos um rumo histórico, assente na reflexão, na previsão, no trabalho. À parte a exploração da costa de África até à Índia, que é que fizemos? […] Mas o que é espantoso […] é que este país improvisado e cheio de nódoas já dure há oitocentos anos. Como não acreditar em milagres? Toda a nossa vida tem sido feita de expedientes e jogos de roleta.» (p. 282)
No mês seguinte, Agosto de 1979, retoma esse então na moda ‘pensar Portugal’, quando a democracia era mediocridade e, ao contrário de outros povos, não sabíamos assumir-nos mesmo no disfórico. País «de élites, de indivíduos isolados que de repente se põem a ser gente», antes de a ‘canalhada’ os insultar ou, mortos, pô-los «ao peito por jactância», quando não os ignora, conclui: «O segredo da nossa História está em que o povo não existe. Mas existindo os outros por ele, a História vai-se fazendo mais ou menos a horas.» (p. 296) No quente da refrega, em projecções do íntimo que a ‘canalha’ desatende, Vergílio Ferreira julga que lhe basta uma pitada de exemplos históricos para resumir país e povo inexistente a alguns iluminados…[1] Conta-Corrente 2, Lisboa, Livraria Bertrand, 1981: 250.