O português e o universalismo
1 Abril 2020, 14:00 • Ernesto José Rodrigues
Duas palavras sobre “Universalismo, particularismo ou cosmopolitismo”, de Castelo Branco Chaves, seguido pela resposta de António José Saraiva, “O português e o universalismo”[1].
No calor das comemorações centenárias nacionais e da Segunda Guerra Mundial, aquele separa «um século de esplêndido universalismo» do génio «característica e acentuadamente universalista» que não temos (p. 11). Entende por «génio universalista a expressão original do que no homem existe de mais profundo e permanente, a elaboração de uma cultura, a criação de uma metafísica da vida e de um estilo de forma particular mas de entendimento universal». Perdão: não foi um, foram dois séculos:
Nos séculos XV e XVI a acção portuguesa no Mundo teve um alcance universalista nos domínios do temporal e, reflexamente, nas ciências de aplicação. A grandeza dêsse alcance só pode ser dignamente comparada à que, nos domínios do social e do moral, atingiu o cristianismo, e entretanto êste povo que realiza obra tão formidável e tão irresistìvelmente transformadora dos destinos do Mundo não enriqueceu a humanidade nem com uma filosofia, nem com uma religião nova, nem com outra cultura, nem com uma arte original. (p. 12)
Esta conclusão é lamentável: a humanidade por onde navegámos não reconhece cultura que ainda (sem razão, pelos vistos) dizemos portuguesa, e nem um resquício de ‘arte original’ se salvou. A relação com o mar, de frutos literários, científicos, humanistas – celebrados até num J. L. Borges, e não tomados como meras «fontes de informação» (p. 15) –, e nascimento de novas nações, é ignorada pelo articulista.
Hesitante no porquê dos Descobrimentos – «fatalidade geográfica» (p. 12), «propaganda e dilatação da Fé», «interesses económicos» –, concede, ainda assim, termos ‘cultura’, irresponsabilizando-se num «talvez» e na crítica ao «utilitarismo»:
Os condicionalismos mesológicos e económicos a que estava sujeita a empresa dos Descobrimentos, impondo ao português uma actividade de fins utilitários, prejudicaram talvez irremediavelmente a sua cultura. Esta só se gera, desenvolve e desabrocha ali onde o desinteresse seja a feição predominante. O utilitarismo pode fazer os povos grandes e fortes, mas não os faz cultos; por si só pode dotá-los com o saber científico e o aperfeiçoamento técnico, mas não lhes dará nem filósofos nem grandes artistas; […]. (p. 13)
Receoso de exemplificar com os impérios inglês ou francês, que nunca quiseram ser ricos nem poderosos, nem criar filósofos – é caso para concluir –, opõe o espírito de Atenas à Roma «brutal e apenas digna de secundário interêsse», mesmo na literatura. A crassa ignorância do articulista estabelece, então, uma analogia entre a «expansão imperial» romana e aquele nosso «grande empreendimento mercantil e guerreiro», o qual, cantado n’Os Lusíadas serviçais («ao serviço dêle»), faz com que, «talvez, seja nulo o valor humano dessa obra estèticamente tão bela». Outro «talvez» cobarde, em conclusão inadmissível. Sem «uma concepção de vida que lhe seja própria» (p. 15), o português lê-se à luz de «concepções alheias»: sem universalismo, o, apesar de tudo, «génio português [cursivo meu] é eminentemente plástico», e «Daí ser impreciso e vário, daí a facilidade com que apreende, imita e adapta, e a falta de singularidade no que realiza e expressa». Decorre que, além de não possuir «génio universalista», também não tem «um definido e afinado particularismo nacional» (p. 16), antes «um universalismo de forma sem unidade de estilo, e sem conteúdo intelectual e étnico», que se designa por «cosmopolitismo». Prova, risível: falar bem línguas estrangeiras (ainda que não fale bem a sua?). Informado? erudito? Sim; culto é que não. Sem «resistência interior que singulariza o carácter», sem «dramatismo que provoca o desajuste entre o que permanentemente se é, e tudo o que vai sendo a fantasmagoria da vida», conclusão derradeira: «O português, em suma, adopta e adapta-se – é cosmopolita.» (p. 18)
Na história das nações, não há génio universalista dado, ou permanente; vão de si os particularismos nacionais, afinal, corroborados nesta prosa; cosmopolitas, sim, mais ou menos em função das eras, eivados, mesmo, de um sentido estóico (que, por ser sobretudo romano, não lanço contra Castelo Branco Chaves).
O jovem António José Saraiva julga perceber que universal (a Expansão, por exemplo, é contingente, um facto) não é o mesmo que universalista, lei constante do espírito, do logos. Mas os gregos não foram contingência e um certo logos? Há um ‘génio universalista’, que só «certas raças» possuem, «conceito qualitativo» absurdo (p. 300)? Não haverá aí uma «concepção qualitativa, substancialista, mitológica, particularista» (p. 299) de ‘génio’? Donde, «uma contradição irredutível»:
Por um lado, o Autor define o universal em função do contingente histórico, separando as duas coisas: o universal está nas leis do espírito, mas, por outro lado, afirmando que os Portugueses – que são, como os Gregos, etc., um facto histórico – não trazem dentro de si «um génio universal», confundiu os dois planos que pretendeu distinguir. Assim, fêz o universal solidário com o contingente e avulso; assim, negou a lei pelo facto. Insisto na contradição: ou o logos é o universal e, portanto, não é específico de certas raças; ou se é específico de certas raças não é o universal.
Posto o que, é já outra conversa saber se «o logos floresceu mais entre os Gregos que os Portugueses» (p. 300), ou se não há «resistência interior» no Camões lírico (e porque não n’Os Lusíadas, que Saraiva, corroborante, ainda não abordara, como não estudara o século XVII que maltrata, na sequência?). Importam menos as derivas sobre o Sebastianismo, ou tão-só enquanto significando recusa de «uma atitude crítica», «de iniciativa», desembocando nisto:
O Português é, como qualquer outro povo, o resultado de uma conjugação de elementos, uma relação, um cruzamento de fios numa rêde. O logos, o universal, a inteligibilidade (três maneiras de dizer a mesma coisa) consiste em que êsse enredamento se torna compreensível e destrinçável. Se desistimos de o compreender, inventamos um D. Sebastião ou um absoluto, que simplesmente suprime o problema, negando a inteligibilidade das coisas. (p. 304)
[1] Respectivamente, em Litoral (Lisboa), n.º 1, Junho de 1944: 11-18, e n.º 3, Agosto-Setembro de 1944: 297-305.