Sobre Eduardo Lourenço
11 Março 2020, 14:00 • Ernesto José Rodrigues
Vem a propósito elogiar o ensaísta mais presente na análise de acontecimentos políticos e literários, com uma agudeza e presciência notáveis, que derivam de uma reflexão continuada sobre o lugar de Portugal na relação consigo mesmo, com a Europa e com os outros. Quando, em 1987, reúne em um volume Heterodoxia I (1949), com que se estreara, e II (1967), assume o ensaio como «forma escrita do discurso virtual de uma existência que renunciou às certezas, mas não à exigência de claridade que nelas, em permanência, se configura» (p. XII). E, na página seguinte, situa a sua ‘família’ nesse pensar Portugal e a excessiva dependência em que o pensamento cultural de hoje ainda vive: «A visão especificamente cultural e, em particular, [...], a visão do processo cultural português continua muito dependente de uma das nossas mais persistentes e articuladas mitologias culturais, a representada soberbamente pela Geração de 70 e repercutida no essencial por António Sérgio, a Geração da Presença e a própria Geração Neo-Realista.» Reconhece, aí, «o que será mais tarde a minha obsessão permanente, a da desarticulação, da des-estruturação das nossas mitologias culturais herdadas do século XIX e a tentativa de uma re-estruturação do discurso cultural português no seu conjunto».
Já em 1949 muito anteriano (homenagem implícita regular, como em O Complexo de Marx ou o Fim do Desafio Português, 1979, até ao belíssimo conjunto A Noite Intacta. (I)recuperável Antero, 2000), abria com “Europa ou o diálogo que nos falta” – que retomaria em Nós e a Europa ou as Duas Razões (1988), e A Europa Desencantada. Para Uma Mitologia Europeia (1994) –, partindo de verificação de ‘escola’: «O mundo da cultura portuguesa arrasta há quatro séculos uma existência crepuscular.» (p. 7) A pouco e pouco, entre volumes dedicados a Torga, ao Neo-Realismo e a Pessoa, os quais retoma na visão de um século da literatura portuguesa, até 1961, em Tempo e Poesia (1974), Eduardo Lourenço reúne elementos para a sua imagologia portuguesa, ou as imagens que nos viemos construindo ao longo dos séculos.
É esse o debate de O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português ([1978] 72010), brilhante, tomando a literatura (e, dentro dela, cada vez mais, a ficção) como corpo a psicografar, e concluindo, na constituição e desenvolvimento do Estado português, (1) pelo trauma das origens, em que um filho se rebela contra a mãe (24-VI-1128); (2) por «um povo naturalmente destinado à subalternidade» (p. 27), como demonstravam os 60 anos de domínio castelhano (1580-1640), ou consciente «de uma distância, de uma marginalidade, talvez, sobretudo, de uma como que fatal dependência ou inferioridade do tipo de cultura» (1988: 25); enfim, (3) viria «o traumatismo-resumo de um século de existência nacional traumatizada» (72010: 30) sob figura de Ultimatum inglês (11-I-1890). Nessa caracterização do nosso modo de ser e estar – aquilo a que Jacinto do Prado Coelho (1947: 107) chamou «feitio português»[1] –, Lourenço filia-se no primeiro romantismo, quando haveria lugar para regredir ao aí degradado século XVII e rever toda a matéria... Da língua, como peça de resistência, a outros assomos autonómicos, repensa-se Portugal bem antes, e diferentemente, de Garrett e Herculano.
De novo Pessoa, e reunião de breves ensaios dispersos sobre autores contemporâneos em O Canto do Signo. Existência e Literatura (1957-1993) [1994], são acrescento aqui pálido em mais larga bibliografia cuja prosa sedutora ilumina o tempo da nossa memória. Em entrevista, reconheceu que o seu «verdadeiro tema é a questão do tempo e da História. Tudo o que escrevo é a construção de um discurso sobre as imagens e miragens da temporalidade.»[2]
Quanto à reflexão havida sobre esse complexo imagológico, também Lourenço se labirintou, paradoxalmente, no século XIX, entretanto questionado por Maria de Lourdes Belchior (1979, 1982), que fez recuar sobretudo às décadas da Monarquia Dual o que temos por essencial quando nos questionamos sobre se existe uma cultura portuguesa – isto é, a consciência, tantas vezes crua, jovial ou magoada, de uma singularidade onde se anuncia o outro, que «somos nós antes de reconhecermos que o outro é igual a nós» (1978: 131).
Menos alma do que um corpo-espírito colectivo recriado em linguagem particular (processo da cultura), o carácter nacional vai da língua aos costumes e crenças, assente em, e acentuando prioritariamente, formulações artísticas e míticas. Estas, porém, nem sempre dão conta da intervenção social imediata, hoje plasmada em manifestações públicas de rua ou nas redes sociais.
Intra ou extramuros, seja qual for a situação existencial (exilado em si, no país, no estrangeiro; desterrado; emigrado, etc.), o português confundiria rosto e máscara, donde proviria o «irrealismo prodigioso» (p. 19) da imagem que de nós fazemos. A vertente psicanalítica era ainda moda nos anos 70 do século XX, e, se acertada, justificaria sucessivos retratos e conclusões ‒ mas também facilmente revertida.
Poderíamos aduzir várias razões, quanto ao século XII: a política europeia via com bons olhos a emergência de nacionalidades[3] e um príncipe resoluto era garantia de êxito e continuidade. Revestia-se do carácter fundador atinente ao mito, eivado de traços simbólicos reforçados na batalha de Ourique (25-VII-1139), onde acrescia a fé religiosa de novos cruzados. Já em 1128, a História de um caos peninsular ordenava-se em mito cosmogónico pensado na mente divina, como dirá O Bobo (1843) de mestre Herculano, rasurado pelo analista. E, se sujeito às variantes deste tipo de narrativa ‒ no caso, inspiração de In hoc signo vinces, de Constantino I (ver Os Lusíadas, I, 60: 3), dos Templários e outras insígnias ‒, formar-se-ia particular armadura ideológica, em que assenta o escudo nacional ‒ até à bandeira de 1911 ‒, além de um imaginário cristão povoando o Norte rural, forte dos seus conventos. Como, trauma?
[1] Definido por «qualidades femininas, líricas, do domínio da sensibilidade», a que andava apensa a Saudade, além do amor como «a principal inclinação Portuguesa», no dizer da Eufrosina. Espanhóis concordes – «chamando-nos “derretidos”, “açucarados”, “sebosos” [aqui, a razão era outra], “castelhanos sem ossos”», um deles, Jerónimo de Villarazin, «foi até criar um verbo, emportuguesar-se, para significar enlear-se, cair em ternura». Mas há o outro lado, complementar: «Poderíamos falar num realismo português nos vários sentidos que a palavra comporta: senso prático; observação e reprodução dos aspectos crus da existência; realismo satírico; realismo plástico; realismo dramático.»
[2] Público, 17-XII-2001. Bibliografia sucinta [1979-1999]: Maria de Lourdes Belchior, “Portugal: o labirinto da saudade”, Revista de História Económica e Social, 4, Jul.-Dez. 1979: 1-14; Eduardo Lourenço, “Esboço para uma meditação autobiográfica”, Raiz e Utopia, 13-14-15-16, 1980: 89-109; José-Augusto França, “A Sociologia da Arte e Eduardo Lourenço”, Quinhentos Folhetins, 1, Lisboa, 1984: 76-78; Eduardo Prado Coelho, Laudatio, Lausana, 1989; Silvina Rodrigues Lopes, Aprendizagem do Incerto, Lisboa, 1990: 199-205; AA. VV., Homenagem a E. L. – Colectânea de Estudos, Lisboa, 1992; Maria Manuela Cruzeiro, “Eduardo Lourenço – O regresso do Corifeu”, Vértice, 70, Jan.-Fev. 1996: 63-73; Miguel Serras Pereira, “Eduardo Lourenço e a ‘temática do tempo’”, Finisterra, 20, 1996: 115-122; José Gama, “Eduardo Lourenço. A consciência crítica da cultura portuguesa”, Brotéria, 145 (1), Jul. 1997: 89-95; Maria Manuela Cruzeiro, “Portugal: Mito e Mitos”, O Escritor, 9, Mar. 1997: 173-181; Daniela Stegagno, O Ensaísmo de Eduardo Lourenço: Ideias, Percursos, Ligações, tese, Lisboa, 1999; Luís Martins, Eduardo Lourenço: Os Anos de Formação, 1945-1958. Uma Bibliografia Intelectual, dissertação de mestrado, Lisboa, 1999; Maria Manuela Cruzeiro, “A outra face das coisas (Nos vinte anos do Labirinto da Saudade)”, O Escritor, 13/14, Dez. 1999: 230-239. No séc. XXI, multiplicaram-se abordagens a Eduardo Lourenço, sendo de relevar o lançamento das Obras Completas, FCG, a partir de 2011, e os éditos propiciados pelo Centro de Estudos Ibéricos, Guarda, a par de passiva na colecção ‘Iberografias’.
[3] «[…] só é possível falar propriamente de “nacionalidades” no Ocidente ibérico a partir do século XII. […] Só a partir do momento em que se forma a aristocracia senhorial se pode falar propriamente de uma relação entre o poder político e a organização social do espaço.» (Mattoso, 2001: 46)