Sobre Eduardo Lourenço e outros

13 Março 2020, 14:00 Ernesto José Rodrigues

Entre os elementos constituintes, que nos conformam doravante, está uma periferia[1], há uma fronteira mais perceptível desde finais do séc. XIII[2] e uma língua, a que recorrem estranhos, como Afonso X[3]. Hoje, é a fronteira da língua ‒ e quanto ela arrasta ‒, mesmo se aquela se despovoa. Afonso Henriques tem tanto de perseverança e determinação ‒ a luta contra os muçulmanos é que o define[4] ‒ como de político, no bom e mau sentido; não sendo melhores as linhagens que o rodeavam ‒ reunidas em livros (cerca de 1280-1285 e cerca de 1340, data, ainda, das linhagens agora peninsulares de D. Pedro) ‒, são suficientes para alargar a família nacional e dar-lhe uma consciência. A deslocação do centro político para Coimbra (1132), a par da inteligência no recém-fundado Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra (1131), próximo do de Alcobaça, é um momento decisivo. O neto D. Afonso II e o bisneto D. Afonso III encerram a orgânica política do Estado, assente em leis, administração e burocracia, finanças, autonomia em relação à Igreja. Este conquistava o Algarve à mourama (1249): geografia perfeita, embora diversa ‒ jamais resolvida no diálogo de surdos entre litoral e interior, senão do Norte guerreiro, já de cavaleiros, clérigos e mercadores, com o Sul urbano e moçárabe, sendo certo que este grupo se difundiu pelo Norte. D. Dinis restaura e acrescenta a fronteira muralhada de D. Sancho I, instaura uma corte literária em que é rei, planta as «naus a haver», consciente de que os parcos recursos naturais, a agricultura e artesanato insuficientes ou pensados no curto prazo, a frágil mercancia interna ou externa, não satisfaziam a população. 

O país faz-se nação, de cima para baixo (mau grado o optimismo herculaniano de um bobo identitário). A nobreza e ordens militares prezam a épica, e os filhos segundos ou bastardos sem fortuna competem com os cavaleiros-vilãos no gosto por feitos ficcionados da tradição europeia, que muitos conhecem em cortes de passagem até à Provença ou Bretanha. O clero é membro pensante da centralização régia. Minados os governos de D. Dinis contra o filho, futuro Afonso IV (1319-1324), que repetirá guerra civil contra o filho Pedro (1355), após arrasadora Peste Negra (1348), o pós-1367, com e sem D. Fernando, reconduz às angústias de um século marcado por desastres na agricultura e epidemias sem conto. Enfim, em 1383-1385, vemos o povo ‒ para não dizer só os mesteirais, que se libertam episodicamente dos comerciantes ‒ protagonista do seu destino, cumulado em Aljubarrota na defesa de uma pátria. Esta como que desmente lapso ‘traumático’ de 255 anos…

 

A «dificuldade de ser», convocando dualidade irresolúvel ‒ «desafio triunfante e dificuldade de assumir tranquilamente esse triunfo» (Lourenço, 72010: 28) ‒, ter-se-ia aprofundado sob os Filipes. Porque não desde a primeira década de Quinhentos, como demonstra Gil Vicente? Esse período não é tão humildoso como se julga. Além do cavalo de batalha autonomista plasmado na celebração do idioma, sebásticos e camonianos, memorialistas, economistas e olisipógrafos, a par de autores bilingues descomplexados e da historiografia alcobacense, ergueram cabelo, ilustrando-se em atitudes e páginas que não ficam atrás de outras eras. Belchior exemplifica com Pero Roiz Soares, Memorial, e, extraído da Fastigínia veigueana, um Portugalete tenso, consciente das suas misérias e assumindo diferenças que não envergonhavam. Mas, sobre isso, discorremos longamente na edição desta obra.

A poltronice monárquico-constitucional é outra conversa. Na verdade, o século XIX é ainda mais desastrado que o séc. XVII, com que justificar o mito da Decadência, que sobrepaira: meio século de perdas territoriais na Europa e na América do Sul, invasões, tratados de comércio ruinosos, protectorado, absolutismo crescente, guerras civis, suspensão das liberdades; e, na segunda metade, o pântano rotativo, bancarrota, interesses financistas, impotência… O Ultimatum foi, entretanto, um maná republicano, que, em vinte anos, fazia cair a Monarquia.

O olhar sobre três quartos de século novecentistas, até à descolonização, afigura-se mais certeiro, embora a proximidade dos factos nos deva pôr de sobreaviso. Belchior salienta, em Lourenço, «O escalpelizar de certos males, como os do nosso perpétuo atraso em relação à ciência [cabe discordar, pelo menos, até ao século XVI], a nossa subalternidade e dependência, a nossa mania de que o melhor vem sempre de fora, o divórcio entre o povo e uma elite culta, soberanamente distante daquele, […]» ‒ e entra a caracterizar o «modo português de ser e estar no mundo» (1979: 5).

Assim, retomando Lourenço (72010: 24-25), «o fundo do carácter português» é uma «mistura de fanfarronice e humildade, de imprevidência moura e confiança sebastianista, de “inconsciência alegre” e negro presságio». Quatro adjectivos secundam este povo: humilde, paciente, resignado, crédulo; e, para os tempos mais recentes: passivo, amorfo, de novo humilde, respeitador da Ordem. Fernando Pessoa já nos dissera conformistas e passivos, sem um golpe de asa ‒ e pior nos tratara na “Ode marítima” de Campos, tom retomado no “Manifesto anti-Dantas”, de Almada, para quem «Os dois males de que sofre a vida portuguesa» são “Manha e falso prestígio” ([1933] 1972: 143-146); A. P. Lopes de Mendonça resume-nos a «um país que fica quase imóvel no meio das suas revoluções» (1979: 7).

O gosto de viver de glórias passadas ‒ ou drama de ter sido: aliás, menos ricos do que julgamos, o que escamoteia pobreza ‒, sendo refrigério (é o caso da Pátria-Saudade pascoaesiana), obnubila ou atrasa o futuro. Ainda aqui, requer-se distinção entre grande e gracioso, como se, parafraseando verso de Carlos Queiroz, só fizéssemos bem Torres de Belém. É uma boutade sem sentido, face ao feito dos Descobrimentos. Corolário, vive-se um drama presente assim facetado: mimetismo, ou macaqueio do estrangeiro, indo, geralmente, muito além de uma saudável porosidade, ou do que A. Sérgio (21976: 165) significa como a «plasticidade de espírito dos portugueses, que os torna adaptáveis ao costume alheio, fàcilmente comunicativos com os outros povos»; incúria pelo que é nosso, já sentida por Garrett e Herculano, quando lhes dói o abandono do património monumental; ignorância, senão desprezo, do que temos cá dentro. Urge, pois, descobrir, «cumprir-se» (F. Pessoa) Portugal, indo além da suspensão contida na síntese histórica de Raul Brandão (S. d.: I: 13), que inspiraria Sem Tecto, entre Ruínas, de A. Abelaira: «A vida antiga tinha raízes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa época é horrível porque já não cremos ‒ e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à espera…»

Belchior nomeia vários títulos de reflexão, opinião, circunstância e análise sobre o caso português: a diligência é útil, compreensiva, mas falham os programas equivalentes, comparáveis aos que, no século XVII alegadamente traumático, assomavam. Hoje, curados do «trauma colonial», persistem problemas diagnosticados em 1979 (p. 14), que vêm de Oitocentos: «caciquismo que tudo invade», «aventureirismos irresponsáveis», «carências económicas que põem em risco a Democracia». Só mudam os tempos…

Concordamos, enfim, que, entre imagens irrealistas, desfasadas ou negativas, um povo só vai , se tiver uma imagem positiva de si mesmo, se for além da «epiderme da cultura», num «esforço teórico contínuo» de que nos mostramos incapazes, acusa Lourenço (1987: 10).

No artigo de 1982, Belchior retoma aquele E. Lourenço, os mesmos autores e títulos, acrescentando outros do séc. XX (em sínteses fugazes: Os Lusíadas, de Manuel da Silva Ramos e Alface; Portuguex, de Armando da Silva Carvalho; Lusitânia, de Almeida Faria; Repensar Portugal, de Manuel Antunes; afora um Ramalho Ortigão comum a duas centúrias) que mais disfórica tornam a imagem que de nós temos.

Demora-se nos, à data, 12 volumes do Diário torguiano e no péssimo retrato tirado por Vergílio Ferreira, sobretudo, em Conta-Corrente. Segundo aquele Torga, contamo-nos em 14 estações: «1. Alma profundamente lírica»; «2. monomania crítica»; «3. incapacidade de ser objectivo e fanfarronice»; «4. somos barrocos, sem poder de análise directa e funda»; «5. padecemos de falta de imaginação»; «6. a nossa vida mental é estagnada»; «7. nota-se uma falta de cultura do povo»; «8. e uma falta de originalidade ou fantasia magra»; «9. assinala-se uma teatralidade»; «10. a universalidade do nosso génio mora na poesia»; «11. somos intuitivos e agudos mas não temos perseverança»; «12. somos parciais e exclusivistas (vícios sem remédio)»; «13. irremediavelmente individualistas»; «14. somos provincianos» (p. 24-25).

De Lusitânia (Almeida Faria, 1980), também transformada (Fernão Álvares do Oriente, 1607), restaurada (Vicente de Gusmão Soares, Lusitânia Restaurada dirigida a seu restaurador El-Rei D. João 4.º, 1641), ou Lusónia (Teófilo Braga, Viriato, 1904), e longínquo Turdugal [5], aos derivados de Portugal (que F. Pessoa trocou por Mensagem, ao contrário de Miguel Torga, 1950; Mensagem, cujo “Nevoeiro” nos oximoriza em «fulgor baço») ‒ Portugalete (Tomé Pinheiro da Veiga, Fastigínia, 1605), Portugalinho (João Medina), Portuguex (Armando Silva Carvalho, 1977) ‒, aos pronomes ( isto, Sá de Miranda), metáforas, perífrases e desvios com o seu quê de simpáticos (Maria Velho da Costa, Casas Pardas, 1977; minha terra, país de Camões, «onde a terra acaba e o mar começa», pessoano rosto da Europa; “O Reino Cadaveroso” de A. Sérgio, da conferência coimbrã de 1926 [ 21972: 25-61], inspirado em Ribeiro Sanches (1777); O Reino da Estupidez [1961] seniano, trazido de Francisco de Melo Franco; Rui Belo, País Possível, 1973), Vergílio Ferreira afunda-nos em lama e porcaria: Portugal «é uma valeta» ( Conta-Corrente 1, 1980: 153), e, com ou sem consciência de uma charge camiliana ao jardim da Europa à beira-mar plantado do D. Jaime ‒ em que seríamos jardim da Europa à beira-mar latrinário ( Nostalgias, 1888) ‒, lembra-se deste descaso: «Ó país do tamanho de um papel higiénico.» (p. 135) Cristovam Pavia (1982: 198) andara perto: «Ó Portugal minha pátria de meia-tigela». É um pérfido desenvolvimento em relação a piolheiras ou à choldra de Eça, D. Carlos, Aquilino, Luís Naves; embora negativo, o caixão vazio de Baptista-Bastos significa bem mais do que tanta latrinice. Se fôssemos para os habitantes, teríamos lusitanos, portugueses, Os Lusíadas (Camões; Manuel da Silva Ramos e Alface, 1977), portugãos ( Fastigínia), povo eleito, cafres da Europa (ambos no Padre A. Vieira), magriços (1966), «pascácios» e «palhaços» ( Conta-Corrente, p. 147, 258), Gente Feliz com Lágrimas (de João de Melo, 1988)…

[1] «Se alguma coisa, por essa época, orientava Portugal para a independência, talvez fosse apenas a sua situação periférica em relação ao centro do poder monárquico.» A reduzida fronteira mais fecha em si a nobreza: «[…] a maioria das suas famílias está unida por estreitos laços de parentesco; […].» (Mattoso, 2001: 47)

[2] «Se, finalmente, considerarmos que a efectiva definição da fronteira como limite militar e como limite económico, implicando, neste segundo aspecto, as noções de importação e de exportação, surge claramente no reinado de Afonso III e depois se concretiza numa linha de defesa pontuada de castelos expressamente construídos ou restaurados por D. Dinis ao longo de dezenas de anos, […] teremos, então, o nítido recorte espacial da nação como área que separa a comunidade dos seus habitantes dos que vivem nos reinos vizinhos.» (Mattoso, 2001: 264) 

[3] Rafael Mesa y López, ed., s. d., p. 151-152, ao apresentar Don Alonso el Sabio, diz que escreveu as Cantigas... «en dialecto gallego ó portugués, [...], sin duda alguna, porque este dialecto tenía una musicalidad entonces superior á la del castellano neto, que adolecía todavía de cierta rusticidad».  

[4] José Mattoso, 2001: 54: «Ora é precisamente o sucesso de Afonso Henriques nesta guerra aquilo que o impõe como o detentor de um carisma que o faz, apesar da ilegitimidade da sua mãe, um digno sucessor de Afonso VI. Que o faz, portanto, não apenas um simples caudilho ou chefe de um séquito, mas aquele que revela a sua nobilitas, a força peculiar do sangue que lhe corre nas veias pela sua strenuitas, a sua coragem, a sua persistência, a capacidade para ser um instrumento de Deus. Só isso o torna digno de cingir a coroa de rei.» 

[5] F. de Oliveira, Gramática da Linguagem Portuguesa, cap. II. Cita-se 1975: 41: «E deste rei Luso se chamou a terra em que vivemos Lusitânia, a qual depois chamaram Turdugal e agora, mudando algumas letras, Portugal, não do porto de Gaia, como quer Duarte Galvão na História de El-Rei D. Afonso Henriques [Crónica do mui alto e esclarecido Príncipe D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal; cap. II], mas dos Túrdulos e Galos, duas nações de homens que vieram morar em esta terra, segundo conta Estrabão no terceiro livro da sua Geografia