Circunstancialidade e autonomia dos autos de Gil Vicente

6 Outubro 2016, 10:00 Maria João Monteiro Brilhante

Como entender o duplo funcionamento dos autos de Gil Vicente no seu tempo de produção? A leitura de uma cronologia do seu percurso como autor de autos nas cortes de Manuel I e João III revela que a produção de autos seguia as circunstâncias da vida da corte, o calendário religioso ou festivo e as encomendas que lhe eram feitas, por vezes com indicações precisas sobre os temas dessas acções destinadas aos membros da corte e aos Reis para quem trabalhava.

Por outro lado, os autos seriam já reconhecidos como acções mais ou menos autónomas, que não se confundiam com as festas ou cerimónias que ocorriam na mesma altura. Têm lugar e tempo próprios e convocam saberes muito mais sofisticados do que os dos cortesãos que faziam os momos e os entremezes. Nada sabemos sobre os "actores" dos autos, mas seriam treinados por Gil Vicente e por isso ser-lhe-á reconhecida uma função específica na corte: fazer os autos a el-rei, ou seja, ser Mestre da Retórica das representações, como se diz num documento oficial. 
Mas a questão da autonomia também interessa para explicar como se tornou Gil Vicente "o pai do teatro português". Para percebermos melhor temos de reconhecer a importância da Copilaçom de todalas obras de Gil Vicente (1ª edição em 1562), reunião dos autos de Gil empreendida pelos seus filhos Luís e Paula Vicente (que reencontraremos em Um auto de Gil Vicente de Garrett).Através dela, se constrói o carácter único da obra de Gil Vicente, não mais associada às circunstâncias em que foi produzida, mas agora como um todo homogéneo, arrumado, classificado e ficará para sempre em letra impressa. Por isso, foi reeditada (1586) e descoberta por Garrett e os seus companheiros românticos que a reeditam no século XIX (ler Livro de obras na plataforma Moodle), como sendo a origem do teatro nacional.
Que nos diz então a Compilação? Diz-nos onde tiveram lugar as representações dos autos, em que data (nem sempre), quem encomendou e qual é o argumento (o assunto). Tudo isto foi escrito por Luís Vicente, o filho, ao editar, ou seja, preparar para a leitura, as falas para as figuras dizerem que o pais começara a arrumar (ler carta/preâmbulo de Gil Vicente a João III).