Crónica-anúncio da Internet

29 Outubro 2020, 17:00 Ernesto José Rodrigues

Um anónimo em 1868 sobre "O jornalismo no ano 2000".

Gabrielomania. 
Balanço: espécies de Opinião.
Folhetim e Crónica: sínteses.
 
OPINIÃO

       Qualquer assunto noticiado pode merecer uma tripla abordagem opinativa: editorial (da direcção), comentário (do jornalista ou editor) e opinião propriamente dita (de colaborador).

       O primeiro decorre de um estatuto editorial por que toda a publicação se rege. Assinado, ou não, pelo director e/ou director-adjunto, responsabiliza a linha do jornal.

       Carreados elementos informativos e argumentos clara e metodicamente expressos, toma-se uma posição, evitando transformá-lo em panfleto.

       Nasceu do artigo de fundo que inundava a primeira página na Imprensa oitocentista, maioritariamente votada à defesa do partido ou de famílias políticas, religiosas e outras. O redactor político, que não precisava de assinar, ascenderia, cedo ou tarde, a lugares de eleição.

       Hoje, pede-se verdade, isenção e objectividade, além de brevidade e clareza. Caluniar ou difamar não constam do programa; e hemos de equacionar a relação público-privado, denunciando este se, de facto, vem reflectir-se negativamente na coisa pública.

       Há uma exposição sucinta do acontecimento confirmado, segue-se um desenvolvimento cartesiano que opera do mais simples para o mais complexo, desaguamos em conclusão não forçosamente unilateral ou dogmática.

       Para bom entendedor, o colorido do tom e a veemência de algumas posições só por milagre, acaso ou grande arte não deitarão a perder a suposta objectividade. Mas é um horizonte a atingir.

       O comentário (em princípio, graficamente solto) do jornalista ou editor da página, precedido de breve análise e propostas de interpretação, é antecâmara de sentido para o editorial.

       Sem querer ludibriar o leitor, ou apertá-lo numa teia de posições alheias que o redactor toma como suas, passa-se tal responsabilidade para colaboradores regulares/episódicos, que marcarão o ponto de vista que, sempre dentro do estatuto editorial, entenderem marcar.

       Os equívocos e dados positivos que desta tripla conjugação aflorarem justificam a participação dos leitores, enquanto partes directa ou indirectamente interessadas.

       Para lá da secção própria de correspondência – desde as primeiras décadas de Oitocentos, e mesmo no espaço nobre do folhetim –, a publicação faz prova de isenção se do próprio corpo redactorial fizer emergir um jornalista provedor dos leitores (ombusdman), independente da direcção e administração.

       Neste quadro – quando não é a folha a motivá-la –, nasce uma forma rica e de largas tradições na Imprensa e na literatura que é a polémica, desembocando tantas vezes num registo "baixo". Tivemos cinco grandes momentos nesse âmbito: a recepção setecentista ao Verdadeiro Método de Estudar, de Verney, e, com larguíssimo e fundamental desenvolvimento na Imprensa periódica, a polémica à volta da publicação do poema anti-ibérico D. Jaime (1862), de Tomás Ribeiro, que prenunciava a ruidosa Questão do Bom Senso e Bom Gosto (1865-66) e a dissolução das Conferências do Casino (1871). A derradeira seria a reacção popular e intelectual ao Ultimatum inglês de 1890.

       Entre os autores, Camilo Castelo Branco, multímodo colaborador de Imprensa, leva, por certo, a palma, seja pela quantiosa actividade neste domínio, seja pela virulência com que respondia aos detractores.

       Espécies da tipologia que avançamos são, pois, o artigo de análise e de opinião (se conseguirmos destrinçar entre ambos), o artigo de fundo propriamente dito (que não responsabiliza quanto o editorial), o apontamento, o bilhete, o eco - conforme a mancha gráfica se reduz e ganha em densidade, pessoalização, crítica e humor, mesmo.

       Estas serão devidas a gente da casa ou de fora, assinadas também por iniciais e, até, nomes enigmáticos (vejam-se os antigos bilhetes de Vítor Direito na página 2 do Correio da Manhã, brevíssimos editoriais que já trazia da última página do antigo República, e o cortante Au Jour le Jour, antes, não-assinado, na primeira página do Monde, agora regressado à última sob nome factício).

       Já o colunismo, por seu lado, convida personalidades de fora, sendo mister referir o que decorre da crítica e da crónica.

       A crítica varia quanto à matéria (desportiva, tauromáquica, teatral, etc.; o mesmo se passa com a crónica) e quanto à sua formalização. Se descermos à particularidade literária, subdivide-se em mera impressão ou juízo de valor, em nota, recensão, ensaio, tratado, sistema.

       Há uma importância crescente nesta hierarquização, já com foros de revista literária e até universitária a partir da recensão: é preciso dizer do que consta a obra ou artigo em causa e questionar os pontos mais fracos, dando-lhes solução ainda que provisória. O ensaio também chega a ocupar as efémeras páginas de um diário; jamais os dois últimos.

       A crítica e a crónica tiveram uma infância jornalística próxima, que chegou a confundir-se. Muito ficaram a dever a outro espaço - aquele que, efectivamente, mais concorreu para que se fale em mass media e que, hoje, ressurge de forma insuspeitada. Estamos a falar do folhetim.

       Pela sua importância, algumas breves palavras.

 

       SOBRE O FOLHETIM

       Nos últimos decénios, pudemos assistir a um curioso regresso do folhetim numa tríplice vertente: a publicação, em jornal e, depois, em livro de algumas ficções e crónicas; o recurso, nos mais variados assuntos, à linguagem própria do género (sobretudo, ao termo em si); enfim, mais significativo, o alcance no universo das audiências que está a conseguir a telenovela, última e mais poderosa descendente daquela matriz, cujas qualidades e defeitos assume sem complexos.

       Referindo-nos, tão-só, ao pós-25 de Abril de 1974, encontramos José Rodrigues Miguéis a sair, religiosamente, no Diário Popular com O Pão Não Cai do Céu (1974-76), aí iniciando, em 17-11-77, Programação do Caos.

       Augusto Abelaira deixa incompleto, no JL - Jornal de Letras, Artes & Ideias de 29-3-1983, O Único Animal Que?, depois saído em volume.

       Mário de Carvalho e Clara Pinto Correia fazem, nas páginas do Diário de Notícias (1985-86), um remake de O Mistério da Estrada de Sintra (1870), que ao mesmo jornal tinham levado Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Intitula-se esse livro E Se Tivesse a Bondade de Me Dizer Porquê?.

       Hélia Correia dá ao Jornal Ilustrado (1986) A Fenda Erótica.

      As referências à linguagem, aos temas e às personagens folhetinescas assomam, entretanto, cada vez mais em livros recentes. Mas o fenómeno, para o comum dos leitores, é mais evidente no apelo que os jornais fazem sempre que desejam exprimir o descontínuo, rotineiro, incaracterístico e até dispersivo da actualidade nacional.

       Na política (o folhetim do Ministério da Saúde), no desporto (o folhetim Rosa Mota), no social (uma fuga rocambolesca), a realidade lê-se segundo uma trama em que sucedem golpes de teatro, momentos de suspensão, cenas inverosímeis, a vitória de personagens secundárias que tomam a dianteira do tablado...

       É o nosso frenesi por histórias - quando o excesso de comunicação já embrulha as mensagens - que assoma em desejos mais ou menos cumulados pela telenovela, depois de o mesmo ter acontecido com o folhetim radiofónico e, antes e paralelamente, com as fotonovelas e a banda desenhada. Símile destas formas, na época áurea do folhetim, era o melodrama.

       Ora, enquanto se reimplanta o romanesco, não desapareceu de vez o folhetim-crónica e José-Augusto França manteve largamente a chama: os que, desde 1968, publicou maioritariamente no Diário de Lisboa, facultaram os dois volumes de Quinhentos Folhetins (1984, 1993).

       Na verdade, ele executa a crónica artística, ou o folhetim-crónica na sua variante crítica (mais voltada para as artes plásticas), como se iniciou, de facto, o género (sobre o teatro) e, ainda hoje, se mantém no feuilleton do Monde (sobre livros), às sextas-feiras.

       Entretanto, raras são as publicações que continuam a seccionar ficções, se não é em tempo de férias, para o que os melhores jornais europeus convidam reputados escritores.           

       O folhetim começa por ser um artigo de crítica dramática lançado, em 1800, pelo abade Geoffroy, no parisiense Journal des Débats. O termo feuilleton, ligado à encadernação, ocorre em 1790 e, já em 1719, o London Post dera, em episódios, Robinson Crusoe, de Daniel Defoe.

       Se a prova da serialização fosse condição suficiente, era possível recuar mais; não: necessita de outras condições para se impor e arrastar decisivamente os hábitos da Imprensa, da escrita, da leitura e do Poder, em suma.

       Essa revolução começa no segundo semestre de 1836 (1 de Julho), em Paris, quando são lançados dois diários concorrentes: La Presse e Le Siècle. Apostam na redução do preço da assinatura para metade, na publicidade e no romance-folhetim.

       Esta literatura "de porteira" - como pejorativamente dirão, sendo que era nos cubículos da porteira e nos cafés que se faziam leituras colectivas - dará curso a uma literatura "industrializada" (Sainte-Beuve), que enriquece as empresas jornalísticas, os autores doravante reconhecidos, torna os leitores sedentos e atrapalha o Poder, que inventa desmoralização dos costumes em textos onde se lê oposição política e que, por isso, em dois momentos, lançará novos impostos sobre a Imprensa que aqueles publica.

       É nesse interim que o folhetim-crónica se afirma, o que, entre nós, com ficções débeis ou de importação, mais depressa aconteceu, independentemente de perseguições desse tipo.

       Os autores são contratados a peso de ouro e a sua transferência leva atrás dezenas de milhares de leitores, aos quais acolhem em gabinetes abertos a reclamações, sugestões, conselhos sobre o destino a dar às personagens. O empresário já exigiu que a história não acabasse antes da renovação das assinaturas.

       Os sucessos de Eugène Sue (com, primeiro, Os Mistérios de Paris, durante 16 meses no Journal des Débats, em 1842-43) e de Victor Hugo (sendo que Os Miseráveis, de 1862, são um romance folhetinesco) podem balizar vinte anos de frenesi, em que o jornalismo se torna de vez um meio de comunicação de massas. Mas a lista não ficaria por aqui, se continuássemos.

       Em Portugal, onde metade da nossa memória colectiva ainda está depositada em muita e ignorada Imprensa, deparamos com o termo folhetim em 1838, só dicionarizado em 1873.

       Espaço ideal para uma imagem do que fomos, convocou, nos seus rodopés de jornais – a coluna caindo, qual "chouriço", passa a ser cortada pelo grosso filete separador, como demarcando o único terreno que, por muito tempo, justificava ser assinado (nas revistas, mantém-se o perfil das colunas) –, os melhores autores e aí vieram a lume os marcos definidores dos géneros literários e jornalísticos.

       “Os Canibais”, de Álvaro do Carvalhal (1865-66, na Revista de Coimbra, ainda com o título A Estátua Viva”; nos Contos, em 1868) são um verdadeiro programa de tiques e diligências narrativas.

       Herculano insere n'O Panorama, desde 1839, as futuras Lendas e Narrativas (1851); aí dá O Bobo em 1843 (em livro, 1878) e inaugura o romance histórico, bem como as cartas sobre a História de Portugal ou O Pároco da Aldeia, alvores da novelística campesina.

       Garrett passeia, também em 1843, parte das Viagens na Minha Terra, nessa Revista Universal Lisbonense por que se responsabilizaria Castilho e onde A. P. Lopes de Mendonça inscreve Memórias de Um Doido (1849-1850). Mas, já em 1848, passara n'A Revolução de Setembro o que será o primeiro título a sério entre nós dedicado a Ensaios de Crítica e Litteratura (1849).

       Príncipe dos folhetinistas, deixou o seu espaço naquele diário ao herdeiro Júlio César Machado, cronista de Lisboa como nenhum outro, jornalista de impressões sobre teatro, viagens, livros ou a modorra nacional: falando de tudo e de coisa nenhuma, numa prosa leve e risonha, não deixou de curar Das Loucuras e das Manias em Portugal (1871), treze deliciosos capítulos antes saídos no Diário de Notícias.

       Neste mesmo ano, acrescentando outro veneno à condição nacional, a verdadeira crónica dos nossos costumes passa-se para o mais largo fôlego d'As Farpas (42 caderninhos de 96 páginas, 1871-1883). Já então, se Júlio César mantinha as suas "revistas da semana" no folhetim, a crónica libertara-se para outras colunas: perdera aquele espaço de eleição, mas arregimentava novos cultores e afirmava-se mais una, no processo de um sujeito confrontado com a realidade da notícia, que lhe chegava e revia ou inventava e justificava. Eça de Queirós excedia-se nesse campo. Camilo, por necessidade, de tudo dava aos rodapés, incluindo teatro. Na província, grassava a poesia.

       Em resumo, numa proposta de tipologia, teremos o folhetim romanesco (conto, novela, romance, com o familiar Continua); o folhetim-crónica, com a variante folhetim-crítico, mais voltado para o acompanhamento editorial; o folhetim-carta, quer pelas missivas dos leitores (que passarão a outra secção), quer enquanto formalização de ficções como O Mistério da Estrada de Sintra; o folhetim-poema (influenciando o poema-folhetim, casos de D. Jaime, 1862, ou Poema da Mocidade, 1865, este de Pinheiro Chagas e causa próxima da Questão Coimbrã); o folhetim-teatro (Poesia ou Dinheiro? e Patologia do Casamento, de Camilo, passadas d'A Concórdia, 1855, às Cenas Contemporâneas, 1856); por derradeiro, o que alguns designavam folhetim-sincrético, quando as anteriores espécies se misturavam.

 

       A CRÓNICA

       A crónica releva da História, da Literatura e do Jornalismo. A "chronica do dia", com que o Diário de Notícias abria nos seus primórdios, informava de entrada, ronceiramente, que «Suas Magestades e Altezas passam sem novidade em suas importantes saudes». Seguiam o calendário litúrgico, nascimento e ocaso do sol, efemérides, despachos telegráficos e locais que, hoje, nunca consideraríamos notícia. Era uma salada a sobrevoar a unidade do folhetim, firme no seu poiso. A História do dia cumpria-se no Jornalismo possível. Em breve, a Literatura tomaria o lugar daquela e, no presente, seria possível associar-lhes outras disciplinas (sociologia, psicologia, etc.).

       O que interessa, todavia, é que, deslaçando-se do folhetim, manteve a constante da voz pessoal, fez-se paleta de uma íntima e suspensa reportagem por que dá a cara o subscritor.

       É à luz daquelas três macro-estruturas que José Marques de Melo elabora um útil texto de síntese (“A crónica”, em Jornalismo e Literatura, 1988, pp. 41-53), contrapondo, depois, a crónica do jornalismo hispano-americano à do luso-brasileiro.

       Aqui, «é um gênero jornalístico opinativo, situado na fronteira entre a informação de atualidade e a narração literária, configurando-se como um relato poético do real».

       Contestamos, de seguida, que ela deva obedecer às «três condições essenciais de qualquer manifestação jornalística: atualidade, oportunidade e difusão coletiva». Não: a crónica pode, e deve, criar as duas primeiras, alargando a terceira. É, como não nota o articulista, uma das facetas do poético, que solta e se liberta do nada.

       O folhetinista sabia isso: acusado regularmente de não ter ideias, reinventava situações que o país não favorecia e brincava com essa desgraça no próprio texto. Queria-se menos crítico que bem-disposto; antes diletante que doutrinário; preferindo os brincos da frivolidade à sisudez conselheiral.

       Tudo isso passou para a crónica moderna, mais irónica do que austera, a favor de jogos linguísticos contra lugares conceituosos. A sua função «educativa» é bem menor do que pensam Nuno Rocha e o autor do artigo.

       Victor Silva Lopes (Iniciação ao Jornalismo, 2ª ed., 1981, p. 103), aí citado, é modelar: «A crónica é um pequeno texto narrativo que se ocupa de um episódio (às vezes, banal ou insólito) do quotidiano [pessoal ou colectivo, acrescentamos]. O cronista prevalece o comentário, numa linguagem expressiva, por vezes poética, mas simples e clara.»

       E depois: «A crónica permite uma interpretação subjectiva da realidade e, frequentemente, faculta ao seu autor a possibilidade de revelar seus ideais. [...] A ironia, o humor ou a dureza do tema são formas geralmente escolhidas para rematar uma crónica. Aliás, o cronista num jornal procura observar a realidade (sem muitas das vezes se servir da entrevista), julga-a e procura extrair um comportamento social [não forçosamente, juntamos].»

       Daniel Ricardo (ob. cit., p. 31), opondo traços distintivos entre reportagem e crónica, na perspectiva de José A. Benitez (Tecnica Periodistica, 1971), oferece seis alíneas, sendo, todavia, problemáticas as duas últimas:

       «e) à vivência pessoal, na reportagem, contrapõe-se a reacção pessoal, na crónica.

       f) A reportagem explica, interpreta, analisa; a crónica propõe, sugere, convida a imaginar.»

       Bom: quanto a f), é um caso de gradação, porque estes géneros podem intercambiar-se; quanto a e), a inanidade da diferença vivência/reacção surge clara se fecharmos com a definição que defende Óscar Mascarenhas (“Crónica nada!”, Diário de Notícias, 26-11-1992): «Crónica é relato pincelado, é reportagem na primeira pessoa. Acompanha um acontecimento num dado tempo e transporta o leitor nos nossos olhos.»

       De imediato, como a negar a citada diferença: «Crónica é o recurso jornalístico a que se lança mão quando a descrição seria fastidiosa, impossível ou ociosa.»

       Ou seja: a oposição entre géneros não vinga; modelização de um programa, qualquer género é singular, contaminado embora. É notório que, nestas aspas de Mascarenhas, só há reacção com vivência.

            Informação alheia ou que de nós extraímos, a notícia pesa e a ela voltamos, porque, sobre as breves ou a síntese – de facto, só título e lead, e nem sempre aquele –, a apreensão dos elementos cronísticos nasce, muitas vezes, do hoje omnipoderoso fait divers.