Literatura e Jornalismo

27 Novembro 2020, 17:00 Ernesto José Rodrigues

Literatura e Jornalismo: ligações perigosas.
Resumo, a partir de Ernesto Rodrigues,  Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998.


Lembrando Barthes, notas de Jean Ricardou e gerais contribuições no colectivo Que Pode a Literatura?[1], podíamos relacionar escrevente [informador; informação = prosa, utilidade, mediação, transparência, colectivo / livro de estilo] e escritor [poesia = literatura, finalismo, opacidade, singular/estilo de um nome].

Referência (passível de ser, em ambos os casos, emotiva, fática e metalinguística) e comunicação, opõem-se, igualmente, no grau, qualidade e destino dos seus ‘ruídos’ e sons (formas de apresentação, capacidade evocativa, peso relativo ou absoluto do emissor, público-alvo, lixo ou conservação em espaço socializado como é uma biblioteca[2]). Transitivo e funcional, aquele, intransitivo e perseguidor de uma ontologia, este, podemos matizar os conceitos no, também barthesiano, «bâtard», esse tipo ‘cruzado’ do escritor escrevente que bem calha no folhetinismo.

O problema da ‘identificação com’, que elege a literatura espaço de intersubjectividade, distingue-a da informação: «[...] é uma outra verdade que se torna minha sem deixar de ser outra. Abdico do meu ‘eu’ [na literatura] em favor de quem fala e, no entanto, continuo a ser eu própria», diz Simone de Beauvoir (ob. cit.: 69). A «actualidade» subjectiva (que leva François Mauriac a conceber «le journalisme comme une sorte de journal à demi intime; – comme une transposition, à l’usage du grand public, des émotions et des pensées quotidiennes suscitées en nous par l’‘actualité’»[3]) só muito parcialmente convive em profissão de pendor universal, que foi sempre sujeito a articulados legislativos e deontológicos.

O texto não-literário é, por definição, o que se não reveste de dimensão estético-literária. Esta, entre outras condições, exige do criador uma intenção, uma finalidade, uma especificidade técnico-artística, conhecimento do quadro institucional e uma autonomia (diferente de gratuitidade) que, embora englobando valores sociológicos, políticos, etc., a eles se não submete. Daqui resulta uma capacidade multidiscursiva, com riqueza de propostas e sentidos dificilmente redutíveis a unívoco. O texto não-literário, em contrapartida, é um modo de discurso denotativo, de sentido dirigido e funcional, prático, em que a comunicação se faz numa só via: mesmo que comporte índices estéticos, estes não podem ser determinantes. Acontece, entretanto, que os textos literários de um tempo, e que dominaram o cânone, passam de moda, são esquecidos; e, simultaneamente, outros, que viviam na periferia, acederam ao centro do literário. Nesta lógica, podíamos considerar não-literário o que não entra no cânone do momento, e que a crítica literária e a Universidade definem, quase sempre contra o gosto das maiorias; mas essa não é a melhor solução, quando certos artigos de jornal podem ser vividos por nós como a melhor literatura… Não espero encontrar uma receita médica (seja, na literatura médica) o prazer que me dão alguns poemas; mas uma lição sobre a química da água, ou do suor, por António Gedeão, obedecendo à prosódia mínima versificatória, torna-se um poema notável. Assim, e em resumo, tudo, em cada momento, pode ser e não ser literário: entre a defesa do específico que toca sensibilidades (não forçosamente maioritárias) e o aspecto prático e meramente comunicativo do discurso se decide do valor de um texto.   

O jornalista-escritor dirá que ninguém o censura – naturalmente, se souber escrever peça de tantas linhas ou cumprir agenda e perceber, claramente, que o reino da verosimilhança não é para vender diariamente nas bancas; escritor-jornalista (não me refiro ao colaborador de Imprensa) é que já não existe, porque foi-se um tempo andrógino em que, contra o parecer hodierno, notícia e comentário se enlaçavam − nem de outro modo havia ironia romântica; em que, para aceder à via real, era recomendável estar em letra de forma, ter um romancelho para mostrar, como dirá Júlio César Machado – sendo que essa via, mais do que a actividade jornalística em si, era o cobiçado espaço do folhetim. Aí se fundiam, num exercício de captura do leitor, literatura e jornalismo[4].


    [1] Trad. de Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa, Estampa, 1968.

    [2] O caixote do lixo é pior, bem vistas as coisas, que «uma existência morta na estante kitsch do novo-rico», onde, pelo menos, há hipótese de ressurreição. (Cf. João Barrento, “Da Literatura, do Jornalismo e da Imortalidade – Sobre Kurt Tucholsky”, Diário Popular – Letras. Artes, 27-IX-1979: I, XII [I]).

[3] «Sur ce plan [de l’‘actualité’], il arrive qu’une maladie ou une simple lecture prenne presque autant de valeur qu’une révolution : c’est leur retentissement dans notre vie intérieure qui mesure l’importance des événements.» “Avertissement”, Journal, Tome I, Paris, Éditions Bernard Grasset, 1944. 

[4] Devedor de muita informação aqui constante, saiu, entretanto, de Helena de Sousa Freitas, Jornalismo e Literatura: Inimigos ou Amantes? Contribuições para o Estudo de Uma Relação Controversa, Rhode Island, Peregrinação Publications, 2002. Seguiram-se outras dissertações universitárias na base de idênticas preocupações. No Brasil, ver Gustavo de Castro, Alex Galeno, orgs., Jornalismo e Literatura. A Sedução da Palavra, São Paulo, Escrituras Editora, 2002. De incidência italiana, com relevo para a terceira página dos diários, Alberto Papuzzi trouxe Letteratura e Giornalismo, Roma / Bari, Laterza, 1998, e Professione Giornalista. Tecniche e Regole di Un Mestiere, nuova edizione, Roma, Donzelli editore, 2003. O contágio entre as matrizes mediática e literária está em Marie-Ève Thérenty, La Littérature au Quotidien. Poétiques Journalistiques au XIXe Siècle, Paris, Seuil, 2007, sendo de acrescentar AA. VV., Presse et Plumes. Journalisme et Littérature au XIX Siècle, Paris, Nouveau Monde éd., 2011.