D. Sebastião (3)

19 Novembro 2020, 15:30 Ernesto José Rodrigues

Pormenores da Batalha, segundo a Jornada del-rei Dom Sebastião à África.

Alguns nomes antologiados em António Machado Pires, D. Sebastião e o Encoberto, 1982.
Debate sobre as oitavas camonianas na Dedicatória d' Os Lusíadas.

Sobre o Frei Luís de Sousa sebástico:

 Passados sete anos sobre o desastre de Alcácer Quibir (1578), D. Madalena de Vilhena não espera mais pelo marido, D. João de Portugal, que buscara longa e inutilmente. Amando, já, Manuel de Sousa Coutinho, decidem casar; nasce Maria de Noronha, arguta e tuberculosa, agora com 13 anos. Na crença sebástica de um regresso do amo, Telmo, imagem do Portugal antigo que D. João traz no apelido, vai destilando maus augúrios. Um dia, aparece romeiro chegado da Terra Santa, que, apontando quadro, se identifica, infeliz Ulisses face ao Ciclope ( Odisseia, canto IX): «Ninguém.» O terceiro acto, coral, deslaça tragédia.

 

1. No primeiro diálogo entre mãe e filha, quase no início, Maria apresenta-se febril, já dominada pela tuberculose, que vai matá-la. Telmo percebe isso – razão pela qual todo se lhe devotará, recusando, mesmo, D. João de Portugal –, e a mãe também, que acredita, todavia, nos favores de Deus para a sua cura. Maria julga poder adivinhar os maus pressentimentos daquela a seu respeito, mas essa é só uma parte, embora, inconscientemente, se anuncie ela mesma causa da desgraça que se aproxima, quando diz que gostaria de ter um irmão (que a todos defendesse, isto é, que estivesse no seu próprio lugar) ou que o pai não tivesse casado (pois, assim, ela não teria nascido, nem viria a experimentar o que já quer esquecer, dormindo para sempre, com a dormideira debaixo da almofada). Trata-se, portanto, de uma cena em que se nos apresenta o estado físico, concentrando, ao mesmo tempo, a dor de alma sua e de quem lhe é mais próximo, bem como o anúncio do sono eterno, que se concretizará no final.

2. 1. D. Madalena teme que as intuições da filha, tornadas mais vivas pela doença, descubram as razões profundas do medo naquela casa. Simultaneamente, tanta atenção, o hábito de ler e interpretar e a vida sonha de Maria esgotam a própria saúde.

2. 2. A mãe, que desvia a conversa, julga-se adivinhada em todos os seus receios, quer os relativos ao primeiro marido, quer à saúde de Maria. Como um livro aberto, esta é capaz de ler nos seus olhos; e a referência às estrelas é tomada pela mãe como uma espécie de visão já do Além, como se a alma de Maria tudo visse do Céu. A partir daqui, D. Madalena não tem dúvidas de que aquele corpo está morto – daí, as referências a Deus, cuja vontade de chamar a Si Maria mais agrava a dor de mãe, esposa e católica.

3. Maria, na ignorância do próprio mal – mesmo reconhecendo que os pais temem por ela –, quer-se afirmativa, entregue ao lazer do campo à actividade do intelecto e da imaginação: afirma, pergunta, evoca. A mãe, reticente e condicional, apresenta-se «mortificada», pela consciência dos perigos, reduzindo-se, ainda, a frases da linguagem familiar: «se Deus quiser», «Valha-me Deus!”, etc.

4. Maria tem da nossa História uma ideia de cruzada pela Fé e luta ao Infiel, em terra e, sobretudo, nos mares. Releva, neste quadro, a importância das ordens religiosas na afirmação ultramarina de Portugal.

5. A repetição é o principal recurso discursivo: assinala medos e marca a dor profunda («Não é isso, não é isso!», «Que estás a dizer, filha, que estás a dizer?», etc.), que o modo reticente acompanha e prolonga. Há um oxímoro curioso no discurso de Maria: «Eu não tenho nada, e tenho saúde.» Mas a repetição encontra-se ainda na estrutura quiasmático-semântica de «– Murchou tudo… tudo estragado», em que se espelha o destino de Maria, também estragado «da calma», isto é, do calor da febre.

6. Garrett pretende significa que há um Fado a pesar sobre os homens, cujos actos têm sempre consequências, que não controlamos. Nessa queda, vão inocentes e criminosos, às vezes, famílias e países. O autor vivera drama semelhante com a morte da amada, dos filhos que dela tivera, e em relação à filha Maria Adelaide, morta no conceito do mundo. Mas, sendo um drama pessoal e familiar, olhava também para o desviado destino nacional após 1580 e em 1843.

7. O sebastianismo está como retrato (de D. Sebastião), alusão (basta pensar n’Os Lusíadas, de que o rei era dedicatário, referidos no início), evocação (quando se fala da batalha de Alcácer Quibir) e memória atroz, que tudo precipita, no nome de D. João de Portugal, companheiro do monarca em Marrocos. Faltaria citar o que D. Madalena designa por «leal incredulidade» do «desgraçado povo» (Acto I, cena II), que, representado em Telmo, acredita em regressos. Internamente, justifica-se o regresso daquela memória, porque também Manuel de Sousa Coutinho, quando cavaleiro da Ordem de Malta, fora preso e regressara do cativeiro no Norte de África. Porque não voltaria D. João e, como ele, o próprio rei?

Por outro lado, o tempo de submissão aos castelhanos pedia gestos patrióticos, como anunciando a chegada da independência plena: a essa luz se pode ver o incêndio do palácio, mais do que para evitar que estrangeiros nele pernoitassem. É um dos muitos actos de revolta por todo o país, com populações atrás dos que se apresentaram como falsos Sebastiões.

Garrett, entretanto, mostra que a História pátria, mal conduzida, leva à morte dos heróis. Nessa medida, o vírus sebástico deixa de ser esperançoso e aniquila quaisquer vontades. Frei Luís de Sousa lança, assim, um olhar cruel sobre o sebastianismo.    

     

Enquanto realização dramatúrgica numa época de longos dramalhões em cinco actos, Frei Luís de Sousa (representado em 1843, editado em 1844) é texto breve que constrói um tempo próprio, na tensão de alguns momentos. Passando-se a acção em três lugares de Almada, é preciso descrevê-los com demora, vistos como âncora, do «luxo» do acto primeiro à ausência de «ornato» no terceiro: nos três casos (no acto segundo, interessa o significado dos três quadros), atardamo-nos no anúncio de grandes males que desembocarão em incêndio do palácio de D. Manuel e chegada de D. João; morte para o mundo do casal e, já física, morte de Maria. A acção apressa-se no gesto «agitado» (cena VIII) e fuga do incêndio; na cena VI do 3.º acto, quando, «com ímpeto», D. Madalena invade a sala, onde julgava Telmo e Manuel de Sousa Coutinho em diálogo; na irrupção em cena (cena XI, penúltima) de Maria, que «entra precipitadamente pela igreja em estado de completa alienação». No mais, como quem está em vias de perder um bem precioso, tem ritmo lento e reticente, elíptico, de acumulação de indícios e subentendidos, com o futuro dubitativo a acompanhar Telmo e o romeiro («Terá...», I, c. II; III, c. XIV). Essa formulação discursiva apoia-se no recitativo – d’Os Lusíadas, com que se abre, à Menina e Moça e ao final bíblico em latim, seja, da leitura individual à colectiva – e na recorrente evocação da batalha de Alcácer Quibir, em particular, quando passamos ao segundo local de acção, face aos quadros na parede. 

Maria é a protagonista, enquanto preocupação maior de todos (até de D. João, de forma menos delida que a do próprio pai), e vítima inocente. Essa importância verifica-se logo na cena II, quando citada pela mãe, e, um pouco à frente, no desejo de Telmo de que ela tivesse nascido «em melhor estado», o que é crítica ao comportamento de D. Madalena, mas, sobretudo, amor entranhado à menina que o conquistara. A inserção de carta trazida por frei Jorge, em que se anunciava o regresso de D. João «vivo ou morto», é o terceiro instante significativo, que adensa o estado de alma de D. Madalena. Para reforçar os seus medos, obrigada a voltar à antiga casa, a verosimilhança pedia incêndio da actual; pedia, enfim, o anúncio da chegada de um romeiro (II, c. XI).

Em resumo: entre aquelas subtilezas da fundamental cena II e estes dois nódulos fortes, com que se avança, noticiado fica um estado de coisas cedo apreendido, uma ansiedade de vários actores que se procura resolver, isto é, atrasar, com mudanças de espaço e novos cenários, algum gesto patriótico ficticiamente acrescentado ou recusa do provável (como seja a volta de reféns em Marrocos). Mas o Destino, que não perdoa o «erro» daquela união conjugal em que se alicerça o drama, é implacável… Manuel de Sousa Coutinho tornar-se-á o clássico seiscentista Frei Luís de Sousa (1555-1632).

 

E quanto a ser ‘drama’ ou ‘tragédia’? Na tragédia, as personagens desafiam os deuses e a ordem estabelecida (estamos na hybris) nas interrogações que lançam sobre o sentido da vida e do destino humano; apesar do travão ao movimento libertário do sujeito exercido pelo coro (que, simultaneamente, sugere ao espectador do que irá passar-se), a vingança (némesis) dos deuses não será esquecida. Esse processo, até à concretização do fatum, ou fado (ananké), assenta em peripécias que concorrem para um clímax e, segundo alguns mecanismos (o da agnórise, p. ex., em que se desvelam inesperados laços parentais, do que também se servem as telenovelas), desemboca em catástase, fase final que resume o sentido e consequências trágicas da acção. Era função da tragédia que o espectador, não raro partícipe dos destinos da pátria evocados na peça (como também pretende, algo subtilmente, Garrett, que dá no Frei Luís de Sousa o Portugal asfixiante do governo cabralista, embora, à superfície, o argumento decorra sob Filipe II de Espanha), nela soltasse, igualmente, as emoções e saísse purificado (cathársis). Em Garrett, Telmo funciona como o coro, entre sinais e agoiros; mas, servindo-se da prosa (e não da nobreza do verso, como requeria a tragédia canónica) e de um espírito cristão inadmissível naquela, só faltava, para se afastar, de vez, da tragédia, que abolisse (o que faz) a regra das chamadas três unidades: de tempo, lugar e acção. A fatalidade que, todavia, deste drama resulta (com algum desvio à verdade histórica) não deve escamotear duas realidades profundas já patentes na tragédia: ser um caso de consciência, e derrotada, mais em Manuel de Sousa Coutinho do que em D. Madalena; e, em última instância, para lá da frente de política de facção imediata, reivindicar a compreensão e piedade públicas para o caso da própria filha de Garrett (entrevista em Maria), nascida poucos anos antes de uma relação não caucionada pela sociedade, nem pela Igreja. Teria a inocente, parece perguntar-se o autor, o trágico destino da filha de D. Madalena e seu segundo marido (como também Adelaide Pastor sucedia a Luísa Midosi no coração de Garrett)? Junte-se a figura de D. João de Portugal, o Destino em pessoa, e ter-se-á um quadro de caracteres nobres, vencidos, todavia, pelo que nos ultrapassa.