Milagre de Ourique

29 Outubro 2020, 15:30 Ernesto José Rodrigues

Notas sobre Ourique.


Na indefinição das origens ‒ «Na antemanhã, confuso nada.» (“Viriato”) ‒, «Todo começo é involuntário» (“O Conde D. Henrique”). O fiat genesíaco retorna neste herói «inconsciente», que ergue a espada[1], «e fez-se». O conde (1066-1112), alegado príncipe húngaro (Os Lusíadas, III, 25, 28; VIII, 9), fizera, antes, filhos em D. Teresa (1080-1130), ilegítima de Afonso VI, que aquele ajudara na conquista do reino galego. Nascidos entre 1094 e 1109 ou 1110, somente o último filho sobreviveu, para missão providencial: nele, até 1185, a espada adquire um sentido, ou «A bênção como espada, / A espada como bênção» (“D. Afonso Henriques”). Espada e cruz dão cruzadismo, que (contra A. J. Saraiva) só a partir daqui se justifica. Quem se faz cavaleiro, em vigília doravante «nossa», é «Pai», primeiro; e seus rostos, por mais humanos aqui e ali[2], não obnubilam o de herói; faltava o milagre, para caucionar o futuro: é isso Ourique (25-VII-1139).

Começando, todavia, por São Mamede (24-VI-1128), conviria reconciliar em grandeza mãe e filho, como fazem A. Herculano, n’O Bobo e no tomo I da História de Portugal, e “D. Tareja” pessoana[3], tida por «mãe de reis e avó de impérios», para logo ser anjo protector («Vela por nós!») e «seio augusto» de um agora necessário re-Fundador. A segunda quadra insiste em filho «que, imprevisto, Deus fadou», cedo interlocutores em batalha-chave.

Camões é claro, no longo discurso de treze oitavas dedicadas a Ourique (III, 42-54): face a cem sarracenos, um cavaleiro só confiava «no sumo Deus que o Céu regia» (III, 43: 2). Subitamente, «na Cruz o Filho de Maria, / Amostrando-se a Afonso, o animava» (III, 45: 3-4), o qual faz do Senhor grito e estandarte, senha e companheiro contra os Infiéis (7-8). Nesse ínterim, Afonso é levantado por «Rei natural» (46: 3): «Desbaratado e roto o Mauro Hispano, / Três dias o grão Rei no campo fica. / Aqui pinta no branco escudo ufano, / Que agora esta vitória certifica, / Cinco escudos azuis esclarecidos, / Em sinal destes cinco Reis vencidos. // E nestes cinco escudos pinta os trinta / Dinheiros por que Deus fora vendido, / Escrevendo a memória, em vária tinta, / D’Aquele de Quem foi favorecido. / Em cada um dos cinco, cinco pinta, / Porque assi fica o número comprido, / Contando duas vezes o do meio, / Dos cinco azuis que em cruz pintando veio.» (III, 53: 3-8; 54) Eis a descrição da bandeira; narrativa mais pormenorizada contém-se, entretanto, na Crónica de Portugal de 1419[4].


[1] A pergunta-indecisão de D. Henrique ‒ «Que farei eu com esta espada?» ‒ é título de filme de João César Monteiro, 1975.

[2] Camões observa que o príncipe soberbo não vê «o muito que erra / Contra Deus, contra o maternal amor;», subsistindo razão superior, que a deita a perder, e justifica rebelião filial contra a «inica [iníqua] mãe» (III, 33: 2): «Mas nela o sensual era maior.» (III, 31: 6-8)

[3] O mesmo Camões, ao falar de mãe que deserda filho, resguarda-se no «velho rumor (não sei se errado, / Que em tanta antiguidade não há certeza)» (III, 29: 1-2). E, se desculpa este pela sensualidade daquela, já não o apoia ao fazê-la prisioneira, «Tanta veneração aos pais se deve!» (III, 33: 8).

[4] Ver Saraiva, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Lisboa, Gradiva, 1988: 163-166. Precede texto de 1416, em latim.