Viriato e Sertório

22 Outubro 2020, 15:30 Ernesto José Rodrigues

Sejamos, ou não[1], filhos de Viriato [180 a. C.-139 a. C.] e Sertório [126 a. C.-72 a. C.], o mito impôs aquele, defensor da Lusitânia, entre a cava de Viseu (outros dizem Cava da Beira, entre Belmonte e Fundão), recolhido no seu escudo sobre pedra informe, e a afoiteza de estátua em Zamora[2], onde se epigrafa Terror Romanorum, Terror dos Romanos: «É tanta a nobreza de nossa terra e gente, que só ela com seu capitão Viriato pôde lançar os romanos da Espanha e segui-los até à sua Itália.» (Oliveira, p. 41) Seria o primeiro exemplo de Cruzada, vocábulo cujo alcance reduzimos, porém, e revestimos de . A. J. Saraiva (1994: 114) alarga o sentido a «missão providencial»: «O mito dos Lusitanos e o de Viriato como precursores de Portugal e o de Ulisses como fundador de Lisboa são contribuições do saber humanista que se subordinam à ideia central da missão providencial dos Portugueses.» Ainda:

 

O primeiro grande mito colectivo português, que aliás é um mito de toda a Espanha, foi o da Cruzada, fixada eloquentemente por Camões no poema nacional dos Portugueses. Portugal era o paladino da fé católica, e a expansão mundial da Fé era a sua vocação própria, a razão de ser da sua história. Em relação especial com Deus, que o favoreceu desde o nascimento, Portugal realizava um plano divino que culminaria na conversão do mundo inteiro. (p. 112-113)

 

Absorvendo o próprio Quinto Império, a ideia cruzadística teria vigorado até A. Herculano (p. 115). Para quê, nesse caso, intervalar outros mitos? Como se concilia com as guerras santas medievais, com Ceuta ou D. Sebastião, onde estava em causa também a fé, e com a dupla Ulisses e Viriato (não outros?), quando, no máximo, a mentalidade quinhentista lhes atribuía um gesto parcialmente fundador ou defensivo, maxime, autonómico? Já fé e missão providencial no literário Ulisses e no pagão Viriato? Onde tal afirmam os primeiros doutrinadores? Ainda se fossem Noé e Túbal…

Camões etimologiza Viriato de vir, varão, para melhor o individualizar na «fama antiga» já lembrada em I, 26: 1-4 [1]: «Desta o Pastor nasceu que no seu nome / Se vê que de homem forte os feitos teve, / Cuja fama ninguém virá que dome, / Pois a grande de Roma não se atreve.» (III, 22: 1-5) Dedica a Viriato duas meias oitavas e uma inteira (VIII, 5: 5-8; 6; 7: 1-4), «Vencedor invencibil, afamado», que só «com manha vergonhosa / A vida lhe tiraram» os Romanos, qual é, na sucessão, o «peregrino» (I, 26: 5-8 [7]) e «Degradado» Sertório, alçando-se «contra a pátria irosa» (VIII, 7: 5-8; 8). Vejamos dois casos na prosa[3].

 A “narrativa epo-histórica” Viriato (1904), de Teófilo Braga, visa caracterizar a ‘alma portuguesa’ «desde as incursões dos Celtas e lutas contra a conquista dos Romanos até à resistência diante das invasões da orgia militar napoleónica», nos seguintes termos:

 

A tenacidade e indomável coragem diante das maiores calamidades, com a fácil adaptação a todos os meios cósmicos, pondo em evidência o seu génio e acção colonizadora;

Uma profunda sentimentalidade, obedecendo aos impulsos que a levam às aventuras heróicas, e à idealização efectiva, em que o Amor é sempre um caso de vida ou de morte;

Capacidade especulativa pronta para a percepção de todas as doutrinas científicas e filosóficas, […];

Um génio estético, sintetizando o ideal moderno da Civilização Ocidental, como em Camões, reconhecido por Alexandre de Humboldt como o Homero das línguas vivas.

[…] a ALMA PORTUGUESA achou no seu Poema a incarnação completa. (2008: 5) 

  

A reconstituição poética de um Viriato pouco historiado move Teófilo, lido em Garrett, ao modelo do resistente, em eras de agonia final da monarquia: «as terríveis desgraças que nos têm acompanhado desde a romanização da península até à subserviência inglesa, como acostumados ao mal, não nos têm alquebrado»; e assume o exotismo como partícipe de uma «fase estética construtiva» (p. 7). Excesso de folclorismo, minudências históricas e largos vocábulos arrevesados prejudicam a fluência.

O pastor, moço de «estatura meã e magra», bem-falante e sensato, apresenta-se como Ouriato (cap. VIII, p. 26), recusando tréguas de submissão a Roma e animando à riposta, embebida em astúcia de quem conhece bem o chão que pisa, desde as alturas dos Montes Hermínios. Por contaminação de outro Viriato, lusitano que acompanhara Aníbal, há-de caber-lhe este nome no acto da aclamação: «[…] dizem que morrera na batalha de Canas; mas o seu ódio não morreu, é redivivo. E porventura não será Viriato o que agora reaparece na figura do maioral da mesta, do valente Ouriato? Como ele, é um salvador que ressurge, um vingador da liberdade da Lusitânia?» (p. 27-28) Depressa o caudilho conquista a região entre Tagus e Anas. Num repouso em Toletum, o «príncipe da Lusitânia» (p. 38) é dignificado pelo sábio Idevor com um colar de ouro, ou víria (no cap. XVI, temos “A canção da víria”), com que se justifica definitivamente o nome. Sucedem correrias e vitórias:

 

A Guerra dos ladrões, como chamavam em Roma à luta heróica de um povo defendendo o seu território, os seus lares, a própria existência, prolongava-se com desastres sucessivos para as armas sempre ufanas dos quirites. Os bárbaros do Ocidente eram exemplo de dignidade cívica e de altura moral para o povo-rei que se arrogava à supremacia da civilização. (p. 72)

 

O procônsul Caio Lélio retratou a Lusitânia junto do senado como a «mais poderosa das nações hispânicas», cuja força não vem «do número dos seus habitantes, mas da sua resistência devida a um temperamento tenaz e incansável, a uma dignidade individual que antes prefere a morte a qualquer aparência de escravidão» (p. 73). A espada romana de pouco serve contra a espada Portus-Gaizus, quando um chefe é invencível; explica (num devaneio sebástico teofiliano) e dá solução:

 

Corria por aqui entre as tribos da Lusónia que apareceria um guerreiro montado em um cavalo branco, e que ele conseguiria repelir o estrangeiro invasor; todos hoje consideram Viriato como a realização dessa velha profecia, […]. Morto este chefe, dissolver-se-á a Lusitânia; porque esse profundo sentimento de raça e de pátria que anima as tribos lusas carece de uma representação que as identifique. (p. 74)

 

Teófilo fazia a sua propaganda intra-republicana… E chega a vez de Lísia ‒ nome não de acaso, pois sugere Lusíadas ‒, «a filha do velho endre» Idevor (p. 78), que fascina Viriato. Entre um tratado de paz enfim aceite por Roma vergada a década de derrotas e o casamento celebrado pela Lusitânia e Celtibéria na Cava de Viriato, já, porém, a traição entrava de roer os próximos, que perdiam favores de exército licenciado… A meio da festa noival, sabe-se que o tratado de Serviliano foi quebrado, pois o irmão procônsul Quinto Servílio Cépio avança com tropas. Mas o sétimo comandante tem outra estratégia: convencer três renegados a apunhá-lo durante o sono ‒ o que cumpre o maior amigo, Minouro. 

Também exótico em nomes (e nem todos comparecem nas “Notas” finais), prosa frouxa, diálogos à moderna, uso inesperado de «camarada», uso excessivo de «porém», A Voz dos Deuses. Memórias de Um Companheiro de Armas de Viriato (1984)[7], de João Aguiar, dá-nos o filho de Comínio no final do cap. VI, descrito na segunda de três partes pelo jovem narrador Tongio, aos 15 anos ‒ como encerra a história aos 25 anos, não se percebe a acção entre 84 e 79 a. C., quando Sertório recebe este livro, escrito «na língua do invasor» (p. 280) ‒, com vírias de bronze cingindo-lhe os braços e «três grandes plumas vermelhas que enfeitavam o seu capacete» (p. 107). Transformam-se, na aclamação, em vírias de ouro, «símbolo do comando supremo» (p. 147), das quais tirava o nome. Mulher de Viriato (cujo defeito era demorar-se a decidir) é, aqui, Tangina, filha de um útil Astolpas.

Tongio reconhece-o herói, não deus, e releva «verdadeiros prodígios de estratégia, diplomacia e eloquência» (p. 198). O trio tredo passa de Ditálcon, Andaca, Minouro a Ditalco, Audax, Minuro: seria preferível Dictaleão, Aulaces, Minuro, os quais emissários (não companheiros de armas), acreditando Servílio Cipião, quando buscam prémio, são executados e publicamente expostos com os dizeres: «Roma traditoribus non praemiat (Roma não paga a traidores)»; o fidelíssimo Tântalo vira Táutalo; em vez de peito sangrado, temos decapitação (147-139 a. C.).

Ocupando André de Resende, Aires Barbosa, Pedro Margalho, Damião de Góis, etc., veio desaguar em Miguel Torga, que faz de Viriato um herói dos Poemas Ibéricos (1965): «O meu nome de ibero é Viriato» ‒ sem o alcance de Pessoa. Após Ulisses, o “Viriato” da Mensagem é assunção da «raça» em tonalidades crísticas: há reencarnação, ressurreição, um Portugal que dele tira «instinto» e se forma (a gradação desce de nação a povo e herói interpelado) ‒ dele, ou daquele «de que eras a haste», seja, Cristo. Impõe-se, assim, «antemanhã, confuso nada» (a clarear) de providencialismo também pessoano; e a necessidade de justificar quem nos cria memória. 

Sertório é mais historiável e menos literário: ver Os Lusíadas, I, 26: 3; VIII: 5: 5-8 e seguintes, até 8: 8, citando nome. Um inesperado Janus Pannonius (1434-1472; 1987: 336), bispo húngaro, lembra-o nos versos 63-64 de uma bela elegia à morte da mãe Bárbara, “Threnos de morte Barbarae matris”:

 

Fugerat Hesperium Sertorius exul in orbem,

         Plurima sed profugo cura parentis erat.

 

[Quando, perseguido, Sertório se refugiu na Hespéria,

Só com os pais se preocupava no exílio.]

 

Pierre Corneille dedicou-lhe uma peça, Sertorius (1662), acrescentando duas mulheres da sua imaginação, a segunda das quais, Viriate, «reine de Lusitanie, à présent Portugal», tem esta justificação, no introdutório “Au lecteur”:

 

L'autre femme est une pure idée de mon esprit mais qui ne laisse pas d'avoir aussi quelque fondement dans l’histoire. Elle nous apprend que les Lusitaniens appelèrent Sertorius d’Afrique, pour être leur chef contre le parti de Sylla; mais elle ne nous dit point s’ils étaient en République, ou sous une monarchie. Il n’y a donc rien qui répugne à leur donner une reine, et je ne la pouvais faire sortir d’un sang plus considérable, que celui de Viriatus dont je lui fait porter le nom, le plus grand homme que l’Espagne ait opposé aux Romains, et le dernier qui leur a fait tête dans ces provinces avant Sertorius. Il n’était pas roi en effet, mais il en avait toute l'autorité, et les princes et consuls que Rome envoya pour le combattre, et qu’il défit souvent, l’estimèrent assez pour faire des traités de paix avec lui, comme avec un souverain et juste ennemi. Sa mort arriva soixante et huit ans avant celle que je traite; de sorte qu’il aurait pu être aïeul ou bisaïeul de cette reine que je fait parler ici. 


[1] Herculano nega essa continuidade entre lusitanos e portugueses, debate prosseguido em Oliveira Martins, Adolfo Coelho, Martins Sarmento, José Leite de Vasconcelos, António Sérgio. De título de jornal e ópera aos pró-franquistas na guerra civil espanhola, Os Viriatos, trata-se de imagem impositiva.

[2] Bronze de Eduardo Barrón Gonzalez, 1883, inaugurada em 1904, deslocada da praça central em 1971. Além de figuração no escudo de Zamora, o tecto do salão da Diputación mostra pintura de Viriato, de Ramón Padró y Pedret, 1882. No Museo del Prado, temos A Morte de Viriato, de José de Medrazo, 1807. É funda a presença do herói no imaginário popular em Zamora, Sayago, etc.

[3] Assinale-se da “Conclusão” de Moniz (2008: 247-265) sobre Viriato Trágico, de Brás Garcia de Mascarenhas: «Incentivo pedagógico aos seus contemporâneos, tal poema transcende, no entanto, a sua época, para se inscrever na matriz identitária das nações hispânicas, designadamente da Lusitânia, cujo território abrange hoje a quase totalidade de Portugal.

Herói épico e trágico, Viriato, tal como é configurado neste poema, brilha novamente hoje como um estóico exemplum do integer uir, do dedicado cidadão que consagra toda a sua vida ao serviço da comunidade que ama e é, por isso, apontado como padrão ilustrativo das maiores virtudes, como a fides, a paupertas, a libertas, a grauitas, a concordia, a clementia, a liberalitas, a auctoritas, a gloria.» (p. 264)