D. Afonso Henriques
23 Fevereiro 2022, 17:00 • Ernesto José Rodrigues
D. Afonso Henriques.
Da batalha de São Mamede ao
milagre de Ourique.
Cruzadismo.
Na
indefinição das origens ‒
«Na antemanhã, confuso
nada.» (“Viriato”) ‒, «Todo começo é involuntário» (“O Conde D.
Henrique”). O fiat genesíaco retorna neste herói
«inconsciente», que ergue a espada[1],
«e fez-se». O conde (1066-1112), alegado príncipe húngaro (Os Lusíadas, III, 25, 28; VIII, 9), fizera, antes, filhos em D.
Teresa (1080-1130), ilegítima de Afonso VI, que aquele ajudara na conquista do
reino galego. Nascidos entre 1094 e 1109 ou 1110, somente o último filho
sobreviveu, para missão providencial: nele, até 1185, a espada adquire um
sentido, ou «A bênção como espada, / A espada como bênção» (“D. Afonso
Henriques”). Espada e cruz dão cruzadismo, que (contra A. J. Saraiva) só a
partir daqui se justifica. Quem se faz
cavaleiro, em vigília doravante «nossa», é «Pai», primeiro; e seus rostos, por
mais humanos aqui e ali[2],
não obnubilam o de herói; faltava o milagre,
para caucionar o futuro: é isso Ourique (25-VII-1139).
Começando,
todavia, por São Mamede (24-VI-1128), conviria reconciliar em grandeza mãe e filho, como fazem A. Herculano, n’O Bobo e no tomo I da História de Portugal, e “D. Tareja”
pessoana[3],
tida por «mãe de reis e avó de impérios», para logo ser anjo protector («Vela
por nós!») e «seio augusto» de um agora necessário re-Fundador. A segunda
quadra insiste em filho «que, imprevisto, Deus fadou», cedo interlocutores em
batalha-chave.
Camões
é claro, no longo discurso de treze oitavas dedicadas a Ourique (III, 42-54):
face a cem sarracenos, um cavaleiro só confiava «no sumo Deus que o Céu regia»
(III, 43: 2). Subitamente, «na Cruz o Filho de Maria, / Amostrando-se a Afonso,
o animava» (III, 45: 3-4), o qual faz do Senhor grito e estandarte, senha e
companheiro contra os Infiéis (7-8). Nesse interim, Afonso é levantado por «Rei
natural» (46: 3): «Desbaratado e roto o Mauro Hispano, / Três dias o grão Rei
no campo fica. / Aqui pinta no branco escudo ufano, / Que agora esta vitória
certifica, / Cinco escudos azuis esclarecidos, / Em sinal destes cinco Reis
vencidos. // E nestes cinco escudos pinta os trinta / Dinheiros por que Deus
fora vendido, / Escrevendo a memória, em vária tinta, / D’Aquele de Quem foi
favorecido. / Em cada um dos cinco, cinco pinta, / Porque assi fica o número comprido,
/ Contando duas vezes o do meio, / Dos cinco azuis que em cruz pintando veio.»
(III, 53: 3-8; 54) Eis a descrição da
bandeira; narrativa mais pormenorizada contém-se, entretanto, na Crónica de Portugal de 1419[4].
[1] A pergunta-indecisão de D. Henrique ‒ «Que farei eu
com esta espada?» ‒ é título de filme de João César Monteiro, 1975.
[2] Cf. Mattoso,
1992: 25-42; Nascimento, s. d. Camões observa que o príncipe soberbo não vê «o
muito que erra / Contra Deus, contra o maternal amor;», subsistindo razão
superior, que a deita a perder, e justifica rebelião filial contra a «inica [iníqua] mãe» (III, 33: 2): «Mas
nela o sensual era maior.» (III, 31: 6-8)
[3] O mesmo Camões, ao falar de mãe que deserda filho,
resguarda-se no «velho rumor (não sei se errado, / Que em tanta antiguidade não
há certeza)» (III, 29: 1-2). E, se desculpa este pela sensualidade daquela, já
não o apoia ao fazê-la prisioneira, «Tanta veneração aos pais se deve!» (III,
33: 8).
[4] Ver Saraiva, 1988: 163-166. Precede texto de 1416, em
latim. Para inspiração dos escudetes ou ‘cinco quinas’ no escudo de Afonso
Henriques, cf. Mattoso, 2001:
170-183.