Viriato e Sertório
22 Fevereiro 2022, 17:00 • Ernesto José Rodrigues
Sejamos,
ou não (Herculano nega), filhos de Viriato [180 a. C.-139 a. C.] e Sertório
[126 a. C.-72 a. C.], o mito impôs aquele, defensor da Lusitânia, entre a cava
de Viseu (outros ficam pela Cava da Beira, entre Belmonte e Fundão), recolhido
no seu escudo sobre pedra informe, e a afoiteza de estátua em Zamora, onde se
epigrafa Terror Romanorum, Terror dos
Romanos: «É tanta a nobreza de nossa terra e gente, que só ela com seu capitão
Viriato pôde lançar os romanos da Espanha e segui-los até à sua Itália.» (Oliveira,
p. 41) Seria o primeiro exemplo de Cruzada,
vocábulo cujo alcance reduzimos, porém, e revestimos de fé. A. J. Saraiva (1994: 114) alarga o sentido a «missão
providencial»: «O mito dos Lusitanos e o de Viriato como precursores de
Portugal e o de Ulisses como fundador de Lisboa são contribuições do saber
humanista que se subordinam à ideia central da missão providencial dos
Portugueses.» Assim, «O primeiro grande mito colectivo português, que aliás é
um mito de toda a Espanha, foi o da Cruzada, fixada eloquentemente por Camões
no poema nacional dos Portugueses. Portugal era o paladino da fé católica, e a
expansão mundial da Fé era a sua vocação própria, a razão de ser da sua
história. Em relação especial com Deus, que o favoreceu desde o nascimento, Portugal
realizava um plano divino que culminaria na conversão do mundo inteiro.» (p.
112-113)
Absorvendo
o próprio Quinto Império, a ideia cruzadística teria vigorado até A. Herculano
(p. 115). Para quê, nesse caso, intervalar outros mitos? Como se concilia com
as guerras santas medievais, com Ceuta ou D. Sebastião, onde estava em causa também a fé, com a dupla Ulisses e
Viriato (não outros?), quando, no máximo, a mentalidade quinhentista lhes
atribuía um gesto parcialmente fundador ou defensivo, maxime, autonómico? Já fé e missão providencial no literário
Ulisses e no pagão Viriato? Onde tal afirmam os primeiros doutrinadores? Ainda
se fossem Noé e Túbal…
Camões
etimologiza Viriato de vir, varão, para melhor o individualizar
na «fama antiga» já lembrada em I, 26: 1-4 [1]: «Desta o Pastor nasceu que no
seu nome / Se vê que de homem forte os feitos teve, / Cuja fama ninguém virá
que dome, / Pois a grande de Roma não se atreve.» (III, 22: 1-5) Dedica a
Viriato duas meias oitavas e uma inteira (VIII, 5: 5-8; 6; 7: 1-4), «Vencedor invencibil, afamado», que só «com manha
vergonhosa / A vida lhe tiraram» os Romanos, qual é, na sucessão, o «peregrino»
(I, 26: 5-8 [7]) e «Degradado» Sertório, alçando-se «contra a pátria irosa»
(VIII, 7: 5-8; 8). Vejamos dois casos viriatianos na prosa, cujo enquadramento,
porém, requer Guerra e Fabião (1992: 9-23).
A “narrativa epo-histórica” Viriato (1904), de Teófilo Braga, visa
caracterizar a ‘alma portuguesa’ «desde as incursões dos Celtas e lutas contra
a conquista dos Romanos até à resistência diante das invasões da orgia militar
napoleónica», nos seguintes termos:
«A
tenacidade e indomável coragem diante
das maiores calamidades, com a fácil adaptação
a todos os meios cósmicos, pondo em evidência o seu génio e acção colonizadora;
Uma
profunda sentimentalidade, obedecendo
aos impulsos que a levam às aventuras
heróicas, e à idealização efectiva, em que o Amor é sempre um caso de vida ou de morte;
Capacidade
especulativa pronta para a percepção de todas as
doutrinas científicas e filosóficas, […];
Um
génio estético, sintetizando o ideal
moderno da Civilização Ocidental, como em Camões, reconhecido por Alexandre de
Humboldt como o Homero das línguas vivas.
[…]
a ALMA PORTUGUESA achou no seu Poema a incarnação completa.» (2008: 5)
A
reconstituição poética de um Viriato pouco historiado move Teófilo ao modelo do
resistente, em eras de agonia final
da monarquia: «as terríveis desgraças que nos têm acompanhado desde a romanização
da península até à subserviência inglesa, como acostumados ao mal, não nos têm
alquebrado»; e assume o exotismo como
partícipe de uma «fase estética construtiva» (p. 7). Excesso de folclorismo,
minudências históricas e largos vocábulos arrevesados prejudicam a fluência.
O
pastor, moço de «estatura meã e magra», bem-falante e sensato, apresenta-se
como Ouriato (cap. VIII, p. 26),
recusando tréguas de submissão a Roma e animando à riposta, embebida em astúcia
de quem conhece bem o chão que pisa, desde as alturas dos Montes Hermínios. Por
contaminação de outro Viriato,
lusitano que acompanhara Aníbal, há-de caber-lhe este nome no acto da
aclamação: «[…] dizem que morrera na batalha de Canas; mas o seu ódio não
morreu, é redivivo. E porventura não será Viriato o que agora reaparece na
figura do maioral da mesta, do valente Ouriato? Como ele, é um salvador que
ressurge, um vingador da liberdade da Lusitânia?» (p. 27-28) Depressa o
caudilho conquista a região entre Tagus e Anas. Num repouso em Toletum, o «príncipe
da Lusitânia» (p. 38) é dignificado pelo sábio Idevor com um colar de ouro, ou víria (no cap. XVI, temos “A canção da
víria”), com que se justifica definitivamente o nome. Sucedem correrias e
vitórias:
«A
Guerra dos ladrões, como chamavam em
Roma à luta heróica de um povo defendendo o seu território, os seus lares, a
própria existência, prolongava-se com desastres sucessivos para as armas sempre
ufanas dos quirites. Os bárbaros do Ocidente eram exemplo de dignidade cívica e
de altura moral para o povo-rei que se arrogava à supremacia da civilização.»
(p. 72)
O
procônsul Caio Lélio retratou a Lusitânia junto do senado como a «mais poderosa
das nações hispânicas», cuja força não vem «do número dos seus habitantes, mas
da sua resistência devida a um temperamento tenaz e incansável, a uma dignidade
individual que antes prefere a morte a qualquer aparência de escravidão» (p.
73). A espada romana de pouco serve contra a espada Portus-Gaizus, quando um chefe é invencível; explica (num devaneio
sebástico teofiliano) e dá solução:
«Corria
por aqui entre as tribos da Lusónia que apareceria um guerreiro montado em um cavalo branco, e que ele conseguiria
repelir o estrangeiro invasor; todos hoje consideram Viriato como a realização
dessa velha profecia, […]. Morto este chefe, dissolver-se-á a Lusitânia; porque
esse profundo sentimento de raça e de pátria que anima as tribos lusas carece
de uma representação que as identifique.» (p. 74)
Teófilo
fazia a sua propaganda intra-republicana… E chega a vez de Lísia ‒ nome não de acaso,
pois sugere Lusíadas
‒,
«a filha do
velho endre» Idevor (p. 78), que fascina Viriato. Entre um tratado de paz enfim
aceite por Roma vergada a década de derrotas e o casamento celebrado pela
Lusitânia e Celtibéria na Cava de Viriato, já, porém, a traição entrava de roer
os próximos, que perdiam favores de exército licenciado… A meio da festa
noival, sabe-se que o tratado de Serviliano foi quebrado, pois o irmão
procônsul Quinto Servílio Cépio avança com tropas. Mas o sétimo comandante tem
outra estratégia: convencer três renegados a apunhá-lo durante o sono ‒ o que cumpre o
maior amigo, Minouro.
Também
exótico em nomes (e nem todos comparecem nas “Notas” finais), prosa frouxa,
diálogos à moderna, uso inesperado de «camarada» e excessivo «porém», A Voz dos Deuses. Memórias de Um Companheiro
de Armas de Viriato (1984), de João Aguiar, dá-nos o filho de Comínio no
final do cap. VI, descrito na segunda de três partes pelo jovem narrador
Tongio, aos 15 anos ‒
como encerra a história
aos 25 anos, não
se percebe a acção
entre 84 e 79 a. C., quando Sertório recebe este livro, escrito «na língua do invasor» (p. 280) ‒, com vírias de
bronze cingindo-lhe os braços
e «três grandes
plumas vermelhas que enfeitavam o seu capacete» (p. 107). Transformam-se, na aclamação, em vírias de ouro,
«símbolo do
comando supremo»
(p. 147), das quais tirava o nome. Mulher de Viriato (cujo defeito era
demorar-se a decidir) é, aqui, Tangina, filha de um útil Astolpas.
Tongio
reconhece-o herói, não deus, e releva «verdadeiros prodígios de estratégia,
diplomacia e eloquência» (p. 198). O trio tredo passa de Ditálcon, Andaca,
Minouro a Ditalco, Audax, Minuro: seria preferível Dictaleão, Aulaces, Minuro,
os quais emissários (não companheiros de armas), acreditando Servílio Cipião,
quando buscam prémio, são executados e publicamente expostos com os dizeres:
«Roma não paga a traidores»; o fidelíssimo Tântalo vira Táutalo; em vez de
peito sangrado, temos decapitação (147-139 a. C.).
Entre
os poetas, Miguel Torga faz de Viriato um herói dos Poemas Ibéricos (1965): «O meu nome de ibero é Viriato» ‒ sem o alcance de
Pessoa. Após
Ulisses, o “Viriato” da Mensagem é assunção da «raça» em
tonalidades crísticas: há reencarnação, ressurreição, um Portugal que dele tira
«instinto» e se forma (a gradação desce de nação a povo e herói interpelado) ‒ dele, ou daquele
«de que eras a haste», seja, Cristo. Impõe-se, assim, «antemanhã, confuso nada»
(a clarear) de providencialismo também pessoano; e a necessidade de justificar
quem nos cria memória.
Sertório
é mais historiável e menos literário: ver Os
Lusíadas, I, 26: 3; VIII: 5: 5-8 e seguintes, até 8: 8, citando nome. Um
inesperado Janus Pannonius (1434-1472; 1987: 336), bispo húngaro, lembra-o nos
versos 63-64 de uma bela elegia à morte da mãe Bárbara, “Threnos de morte
Barbarae matris”:
Fugerat
Hesperium Sertorius exul in orbem,
Plurima sed profugo cura parentis erat.
[Quando,
perseguido, Sertório se refugiu na Hespéria,
Só
com os pais se preocupava no exílio.]
Pierre
Corneille dedicou-lhe uma peça, Sertorius
(1662), acrescentando duas mulheres da sua imaginação, a segunda das quais,
Viriate, «reine de Lusitanie, à présent Portugal», tem esta justificação, no
introdutório “Au lecteur”:
«L'autre femme est une pure idée de mon esprit mais qui
ne laisse pas d'avoir aussi quelque fondement dans l’histoire. Elle nous
apprend que les Lusitaniens appelèrent Sertorius d’Afrique, pour être leur chef
contre le parti de Sylla; mais elle ne nous dit point s’ils étaient en République,
ou sous une monarchie. Il n’y a donc rien qui répugne à leur donner une reine,
et je ne la pouvais faire sortir d'un sang plus considérable, que celui de
Viriatus dont je lui fait porter le nom, le plus grand homme que l’Espagne ait
opposé aux Romains, et le dernier qui leur a fait tête dans ces provinces avant
Sertorius. Il n’était pas roi en effet, mais il en avait toute l'autorité, et
les princes et consuls que Rome envoya pour le combattre, et qu’il défit
souvent, l’estimèrent assez pour faire des traités de paix avec lui, comme avec
un souverain et juste ennemi. Sa mort arriva soixante et huit ans avant celle
que je traite; de sorte qu’il aurait pu être aïeul ou bisaïeul de cette reine
que je fait parler ici.»