Iconoclastia: o paradoxo entre o poder das obras de arte e a sua fragilidade; tipos de destruição das obras de arte e suas razões ao longo do tempo histórico.

24 Setembro 2015, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

O estudo das obras de arte torna-se mais difícil quando verificamos que as peças sofreram adições substanciais no decurso da sua existência, ao serem alteradas por restauros e acrescentos, ou seja, ‘desmemorizadas’ por falta de registo, e ‘desidiologizadas’ por alteração de funções, integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos artísticos onde o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura pensante que continua a arvorar, a par da ignorância, a desonestidade, a ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade identitária…

     As manifestações de Iconoclastia e de Iconofilia digladiam-se entre si ao longo da História dos homens – aliás, elas misturam-se também, num sistema de contrôlo do papel das imagens como instrumento eficaz de propaganda (seja ela qual for). A consciência de que as imagens reunem em si um poder imenso leva a medidas de contrôle do seu uso e na redobrada vigilância do modo como agiam (e agem) os artistas e os detentores de obras de arte (não só «imagens sagradas»), ao mesmo tempo que o iconoclasma se acentua em nome do combate ao outro (o paganismo, a idolatria), contra manifestações culturais autóctones (caso da destruição sistemática dos templos hindus na antiga Índia portuguesa no século XVI e, recentemente, dos templos sírios pelo Estado Islâmico, ou dos Budas do Afeganistão pelos talibans)…

     O estudo das obras de arte torna-se mais difícil quando verificamos que as peças sofreram adições substanciais no decurso da sua existência, ao serem alteradas por restauros e acrescentos, ou seja, ‘desmemorizadas’ por falta de registo, e ‘desidiologizadas’ por alteração de funções, integradas (por exemplo) em novos espaços e em outros contextos artísticos onde o sentido primeiro que presidiu à sua factura foi sujeito a alterações que levaram à perda inexorável desse mesmo sentido. É esse o caso de tantos conjuntos artísticos portugueses que sofrem o estado dominante de uma cultura pensante que continua a arvorar, a par da ignorância, a desonestidade, a ignorância e o preconceito redutor ao olhar para a própria realidade identitária… Por isso as obras de arte sofrem – alteradas, mudadas de sítio, mal conservadas, desrespeitadas, desmemorizadas, vistas sem ternura ou o mínimo elementar de atenção. Ao defender-se um nível ou instância superior do nosso trabalho de historiadores de arte e de técnicos de conservação e restauro – a Fortuna Crítica, etapa maior de uma História da Arte consequente – é imperioso não esquecermos que é ao nível da crítica heurística, em que o ‘estado da questão’ particular se inicia, e das capacidades de saber ver em globalidade e sem preconceito, que se centram todas as virtudes da metodologia proposta pela nossa disciplina.

     Existiu sempre da parte dos homens – e continua a existir – uma deriva iconoclástica  que se manifesta, em relação à imagem que adora, por que nutre encanto, respeito, desconforto, ou medo – de diferentes modos: Um iconoclasma inconsciente e auto-flagelador, um iconoclasma destruidor do «outro», um iconoclasma correctivo por razões morais, um iconoclasma correctivo por razões políticas, ou por razões estéticas, um iconoclasma de intuito propiciatório, um iconoclasma de esconjuração do medo, um iconoclasma de apagamento da memória do «outro», um iconoclasma de exegese, um iconoclasma de afirmação de «cultura superior», um iconoclasma de afirmação utópica. Destruír para conservar valores, para afirmar estratégias,para impôr critérios «supremos», para atestar o primado de uma iconofilia «superior» -- foi sempre assim... Quanto trabalho existe para os Historiadores de Arte que desejem estudar os porquês destas estratégias de comportamento destruidor, os mecanismos de gosto e de primado estético que prevalecem, época a época !

BIBL.: Cf., entre outros estudos sobre as razões de perda e de destruição, Alain BESANÇON, L’image interdite. Une histoire intellectuelle de l’iconoclasme, Arthème Fayard, Paris, 1994; David FREEDBERG, The Power of Images, The University of Chicago Press, 1989 (trad. espanhola: El Poder de las Imágenes. Estudios sobre la historia y la teoría de la respuesta, ed. Cátedra, Madrid); e Cécile DUPREUX, Peter JEZLER e Jean WIRTH (coordenação), Iconoclasme. Vie et mort de l’image mediévale, Musée d’Histoire de Berne e Musée de l’Oeuvre Notre-Dame de Strasbourg, 2001BIBL.: