Liberalidade, felicidade, utopia, valores da literatura artística do Renascimento

12 Novembro 2015, 10:00 Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão

 A cultura artística do 'largo tempo do Renascimento' explorou, à luz dos contributos e debates no seio do Humanismo, o conceito de Felicità Pubblica (parangonizada com a Felicità Eterna), dando corpo à ideia de que a arquitectura, a pintura, a escultura e demais obras de arte, quando usadas segundo os princípios clássicos recomendados pelos bons mecenas, contribuíam para o bem público e para uma vivência mais harmoniosa de todos os homens. Assim, seguindo os preceitos vitruvianos, já Léon Battista Alberti (no De Re Aedificatoria) assumiraa que a produção arquitectónica trazia vida estável para as comunidades e uma espécie de felicidade geral, algo que os artistas e encomendantes portugueses do século XVI não deixaram, também, de acentuar (no caso de escritores como Francisco de Holanda, de pintores como Gregório Lopes, de arquitectos como Miguel de Arruda). A consciência desse princípio está presente, não só quando os artistas reivindicaram um estatuto social de liberalità, como quando geram obras onde a dimensão utópica e a busca do sentido da utilitas são expressas com maior ou menor clareza.

Recorremos a exemplos no campo da teoria das artes, e na pintura e escultura portuguesas de Quinhentos, para analisar melhor esses sinais de presença de uma busca direcionada para a Felicitá, pressentida em vários modos no substracto da criação. Mais tarde, já nas primícias do século XVII, Cesare Ripa na sua famosa Iconologia sintetizará esse ideal renascentista da felicità pubblica através da criação de uma figura feminina sedutora de mulher cujos atributos são a cornucópia, o ceptro e a coroa, e com a palma que remete, enfatizando o grau de beatitude e pureza, para a alegoria da felicità eterna, tão explorada no contexto da Contra-Reforma católica e unindo o ideal de Felicidade à boa prática da virtude cristã.  

Desde os tempos de D. Manuel I e de D. João III, e do primado de uma arte de regime assente na consciencialização do papel polarizador de Lisboa como umbilicos mundi, acentuou-se em Portugal essa convergência de uma produção artística como expressão de harmonia e de felicidade dos povos, sob signo do cristianismo universal, mas será especialmente com o Maneirismo de raíz italianizante, o movimento estético dominante no terceiro quartel do século XVI, que essa veia melhor se desenvolveu, através de obras que acentuam uma veia utópica de Felicità e mostram predilecção pelas imaginosas construções de um mundo perfeito, alternativo à dramática crise do seu século.  A carta de Diogo Teixeira a D. sebastião, em 1577, reivindicando um estatuto de liberalidade para si e a arte da Pintura integra-se nesse espírito.

Com o início da Contra-Reforma, a Igreja desenvolveu formidável  campanha a fim de controlar os excessos das imagens expostas ao culto e regulamentar o seu bom uso. A LIBERALIDADE associa-se com o sentido do DECORUM. O livro do Padre Jerónimo Nadal Evangelicae Historiae Imagines (Antuérpia, 1593), com muitas gravuras, foi a mais popular para redefinir a iconografia credível e impôr uma «arte correcta». A 'Orbita Probitatis e o Veridicus Christianus' de Johannes David foi outra obra popular na Europa contra-reformada e que grangeia natural sucesso, influenciando clientes e artistas. Estas e outras obras dadas à estampa, como o livro de Sucquet, propunham combater o «dogma errado», a «formosura dissoluta», e a violência contra «imagens sagradas», em nome do Decorum e da «verdade cristã».