Um caso de estudo para a solidez das metodologhias: as 'Tróias' do pintor Diogo Pereira.
29 Outubro 2015, 10:00 • Vítor Manuel Guimarães Veríssimo Serrão
Comenta-se uma 'ficha analítico-descritiva' em torno das «Tróias abrasadas» pintadas por Diogo Pereira no século XVII. Conhecem-se hoje doze versões da Tróia abrasada da autoria de Diogo Pereira, e nessas pinturas revelam-se o engenhoso efeito fantasista, o recurso a atmosferas apocalípticas e derivações labirínticas dos planos, pese que ao nível das figuras o artista se mostre duro e com derivação de gravados. Três dessas Tróias, como a tela da colecção Franzini, de Milão (com o monograma D.P.p.), andavam até então atribuídas a François De Nommé, pintor lorenense conhecido em Nápoles como Monsú Desiderio, atribuição sem consistência histórica mas que atestava a qualidade do artista. A sequência de obras de Pereira, alvo de estudo e restauro, permitiu identificar um núcleo sólido de trabalhos e definir-lhe base estilística. Desta ‘reabilitação’ resultou que Pereira pudesse ser visto à luz das qualidades que o público do século XVII (e XVIII) justamente lhe destacou. Revelando falta de sólida formação, devido ao isolamento vivida por Portugal no segundo terço do século (e justifica juízos negativos como os que lhe dirigiu o Conde Raczynski em 1847), a verdade é que a paleta é solta e a modelação ousada, o paisagismo é idealizado e fantástico, as ‘rovine’ clássicas abundam, e essas características melhor o valorizam. Muitas das Tróias abrasadas se inspiram, no grupo de Eneias a transportar Anquises, em fontes gravadas como uma edição parisiense de 1584 do Emblemata Liber de Alciato, por Jean Richer, e a edição (Paris, 1619) das Metamorfoses de Ovídio, com gravuras de Jean Mathieu. Diogo Pereira esteve activo em Lisboa entre 1630 e 1658, data da morte, e realizou obra importante. Ligado às esferas políticas do tempo, época conturbada do Portugal Restaurado e das guerras com Castela, Pereira seguiu uma via artística distinta da corrente tenebrista oficial -- facto que contribuíu para o seu sucesso mas que justifica, também, que se tornasse de seguida um pintor muito esquecido. A fama deve-se a ter desenvolvido um ‘género’ ao tempo sem rival, como criador de catástrofes, fogos, Tróias abrasadas, Infernos, Sodomas, Meses, países, bambochatas, borrascas de mar, bodegones, dilúvios e temas afins. Nesse domínio, e com as devidas distâncias, Pereira foi uma espécie de Monsú Desiderio português de tal modo mostra paralelos com a arte daquele famoso pintor lorenense que se estabeleceu em Nápoles, chamado François de Nommé. Autor de telas extravagantes e caprichosas, Pereira integra-se melhor na tradição final do Maneirismo, pelo apego ao fantástico e ao surreal, do que no ‘realismo’ barroco da pintura oficial do seu tempo, a época de José do Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos ou Bento Coelho da Silveira. Sabemos que em 1652 servia de escrivão na mesa de São Lucas, sendo mordomo em 1654, e de novo escrivão em 1658, na mesa presidida pela nobre amadora D. Maria Guadalupe de Lencastre e Cardenas, duquesa de Aveiro e mecenas das artes, falecendo nesse ano. Embora a tradição recolhida em 1758 por Pietro Guarienti diga que morreu pobre, o percurso documentado parece infirmar essa suposição.
Como escreveu o exigente crítico Félix da Costa Meesen no seu tratado Antiguidade da Arte da Pintura (1696), «Diogo Pereira genio raro, sempre se ocupou em incendios, Diluvios, Tromentas, noites pastoris, vistas varias de paizes com gados; no que foi tão celebre neste genero, como os mais peritos nas couzas de mayor empenho; e como o seu exercicio foi sempre imitar desgraças, nunca chegou a ver fortuna». Tal explica o sucesso: como especialista em Incêndios de Tróia, cenas pastoris, meses, países, Infernos, Sodomas abrasadas, bambochatas, fogos, dilúvios, borrascas de mar, bodegones, floreiros e temas de simbologia histórica-profana e tónus fantasista, teve fama no seu tempo e obra disputada por clientelas de renome. Ao lado de Avelar Rebelo, Baltazar Gomes Figueira, Josefa de Óbidos e Bento Coelho, foi uma das estrelas da nossa pintura do século XVII. Trata-se de pintor singularíssimo, pelo engenho criativo e força revolucionária das touches. Famoso num ‘género’ que o aproxima do complexo François de Nommé (Monsú Desiderio) e demais pintores activos em Nápoles, resta saber por que vias se aproximou do mercado napolitano, território da Corte de Madrid, ainda que pudesse conhecer obras oriundas dessa ‘escola’ em palácios peninsulares. O poeta Diogo de Noronha e Nápoles, do partido brigantino, era um desses admiradores de Pereira e tinha, ademais, relações com a cidade italiana. O modo como o pintor se inspirou nessas fontes e a forma sedutora como usa a tradição do capricho arquitectural e a liberdade cenográfica das rovine, numa atitude internacional com esforço de actualização, torna-o afim a um mundo fantasista e onírico que o aproxima de mestres como Juan de la Corte, Francisco Collantes, Michel Bestard e, ainda, Claude Deruet, Sebastián Franck, David Teniers II, Didier Barra, Cornelio Brusco, Isaac Schawenbourg, Filippo Napoletano, François De Nommé. São essas, mais que os flamengos e holandeses do tipo Gerard Dou, as fontes artísticas precisas em que Pereira deve ser situado. As duas dezenas e meia de peças que hoje subsistem de Diogo Pereira assumem-se menos com uma «pintura de ar livre», no sentido tradicional e mais como divagações em torno de temas do Velho Testamento e da Antiguidade clássica, como arquitecturas idealizadas, traduzidas cenograficamente em efeitos de ilogismo que aparentam o pintor seiscentista (dentro das naturais distâncias) com o referido e misterioso Monsú Desiderio. Existem potencialidades de paisagista em Pereira, muito superiores às de pintor de figura, mas a sua visão da «realidade» pautou-se, não propriamente por registos de «ar livre» e sim como elocubrações intelectualistas em torno de um restrito temário que ao tempo fazia as delícias do coleccionismo erudito. Como pintor de caprichos, afirma-se na visão cenográfica das rovine e na liberdade das touches e a sua obra assume-se o melhor que, de género histórico-mitológico, subsiste no Seiscentismo nacional, com um detalhismo de arquitectura antiquizante, uma cenografia da paisagem idealizada e um sentido trágico da «catástrofe» que interpreta com grande dose de pessoalismo. As Tróias abrasadas de Pereira, com suas atmosferas apocalípticas e efeitos labirínticos, eram eficazes no tempo da Restauração, funcionando como arma de legitimação e propaganda da causa nacionalista dos Braganças. Após 1640, de facto, o tema adquiriu imensa popularidade: entre os documentados possuidores desses quadros estavam, entre outros, o Bispo D. Manuel da Cunha, capelão do rei, D. António Álvares da Cunha, senhor de Tábua, conspirador de 1640 e fundador da Academia dos Generosos, os membros das famílias Mascarenhas e Sousas, soldados da Restauração, o Conde de Tarouca, os Marqueses de Borba, Nisa e Orisol, D. Diogo de Noronha, D. Tomás de Noronha e Nápoles, etc. O tema era visto, nestes «anos de ferro» da Restauração portuguesa e das sangrentas guerras com Castela (1641-1668), como dotado de funções moralizantes que atestavam o Amor piedoso de Eneias (precursor de Jesus, segundo as interpretações da 4ª écloga do poema de Virgílio) que salva Anquises e os deuses Lares, simbolizando a fraternidade cristã; aliás, o tema justificava, também, a ideia da resistência dos povos face à tirania, pelo que servia bem a retórica cristã-brigantina à luz do espírito de 1640; em terceiro lugar, encarnava a tese da ancianidade de Portugal, uma tese legitimadora da Restauração através da lenda da fundação de cidades lusas por descendentes de Ulisses e Eneias fugidos de Tróia (caso dos livros de Gabriel Pereira de Castro e de António de Sousa de Macedo, na senda dos de Frei Bernardo de Brito); enfim, simbolizava as virtudes do monarca cristão tal como a empresa XXVI da Idea del Principe Cristiano de Diego Saavedra Fajardo (Madrid, 1640), ao ligar o cavalo de Tróia à astúcia face ao inimigo e ao alerta contra o perigo da falta de unidade nos reinos. A identidade de Eneias com o Restaurador transparece em parangonas de homenagem a D. João IV, em textos laudatórios oficiais (o da Universidade de Coimbra de 1641 aquando da aclamação) e em orações parenéticas. Dadas a conhecer com inesperado sucesso na exposição Rouge et Or. Trésors du Baroque Portugais (Paris-Roma, 2001-2002) as Tróias destacaram, então, essa memória de intuitos político-parenéticos, em que o pintor se esmerou. O sentido do trágico, ao modo napolitano, interessou então a crítica, pela actualidade artística do seu autor, a sua ousadia plástica, e o facto de se tratar de nome praticamente desconhecido nos meios historiográficos e, ainda, nos círculos antiquários e de mercados da arte, onde estas obras passaram a ser muito revalorizadas.
As pinturas de Diogo Pereira assumem-se menos com uma «pintura de ar livre» e mais como divagações morais de temas do Velho Testamento e da Antiguidade clássica, como bem se destaca na peça da BNP. Existem potencialidades de paisagista superiores às de pintor de figura, mas em visão da realidade que se pauta com elocubrações intelectualistas em torno de um temário que ao tempo fazia as delícias do coleccionismo erudito. Como pintor de caprichos, pelo tónus fantástico, assume-se como o melhor que, de género histórico-mitológico, subsiste no tempo do Barroco nacional, com detalhismos antiquizantes, uma cenografia da paisagem idealizada e um sentido trágico da catástrofe, que o equiparam quase a um maneirista fora de época… Assume a identificação implícita da figura de Eneias como o rei-restaurador D. João IV, espécie de 'novo Eneias' libertador da pátria, campeão das liberdades cívicas, defensor da refundação de uma 'nova Roma' em Lisboa, e áspide da imagem do 'bom príncipe cristão' que conduz o antiquíssimo Portugal à tradição das glórias passadas. É por isso que estas pinturas eram tão estimadas pelas clientelas do tempo da Restauração, e que os partidários dos Braganças viam nessas obras um testemunho de parenetização de cunho nacionalista, com evidente carga simbólica: na evocação clássica da guerra de Tróia, o perfil de Eneias, salvador de Anquises, idealizava o bom governo cristão, espécie de metáfora às virtudes do rei-restaurador. É de esperar que venham a aparecer novas obras de Diogo Pereira em reservas de museus ou colecções privadas portuguesas e estrangeiras, e é sintomático que algumas das obras que foram entretanto identificadas andassem atribuídas à esfera e mesmo aos próprios pincéis de Monsú Desiderio !
BIBL. Maria Rosaria Nappi, François De Nomé e Didier Barra, l'enigma Monsù Desiderio, Milano, Roma, Jandi Sapi Editori, 1991; Vitor Serrão «Le monde de la peinture baroque portugaise. Naturalisme et ténèbres, 1621-1684», catálogo da exposição Rouge et Or. Trésors du Portugal Baroque, Musée Jacquemart-André, Paris, 2001, pp. 51-77; Il mondo della pittura barocca portoghese. Naturalismo e tenebre. 1621-1684», Rosso e Oro. Tesori d’Arte del Barocco Portoghese, Musei Capitolini, Roma, Electa, 2002, pp. 44-61; «O mito do Herói redentor: a representação de Eneias na pintura do Portugal Restaurado», Quintana -- Revista do Departamento de Historia da Arte da Universidade de Santiago de Compostela, nº 1, 2002, pp. 71-82; «Contribuição para o estudo das representações histórico-mitológicas na arte portuguesa do século XVII. O ciclo da «Guerra de Tróia» pelo pintor Diogo Pereira», Actas do Colóquio Antiguidade Clássica: Que Fazer com este Património?, volume de homenagem a Victor Jabouille, org. A. Aires Nascimento, Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras de Lisboa, 2003, pp. 91-100; A. Raczynski, Les Arts en Portugal, Paris, 1846, e Dictionnaire Historique et Artistique du Portugal, Parias, 1847; George Kubler, The Antiquity of Art of Painting by Felix da Costa, Harmondsworth, 1968, pp. 269-270; João Francisco Marques, A Parenética Portuguesa e a Dominação Filipina, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986; idem, A Parenética Portuguesa e a Restauração, 1640-1668. A Revolta e a Mentalidade, 2 vols., I.N.I.C, Lisboa, 1989.