Com Damásio na representação performativa e na espectação

16 Outubro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

OUTUBRO                                     3ª FEIRA                               8ª Aula

 

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Concentrámo-nos na leitura silenciosa do ensaio Revisitação à orgânica conceptual trabalhada por António Damásio em O Livro da Consciência com aplicação ao comportamento humano em artes performativas.

Esta leitura procurou acompanhar um percurso de reflexão comportamental baseado em experiência de observação e auto-observação directamente relacionada com artes performativas.

Quando Damásio nos diz, na obra que serviu de sustentação ao estudo, o que aqui agora exponho, acredito que ele nos queira esclarecer sobre aspectos do funcionamento entre cérebro-mente-corpo, ou em sentido inverso (um corpo saudável mantém ininterrupta esta acção) na perspectiva neuronal, e que sustentam o processo de representação interna em cada um de nós, ao mesmo tempo que tornam extensível essa representação e mapeação à nossa relação com o que nos é exterior: «(…) nos cérebros elaborados das criaturas complexas, as redes de neurónios imitam a estrutura das partes do corpo às quais pertencem. Acabam por representar o estado do corpo, mapeando literalmente o corpo para o qual trabalham e constituindo uma espécie de substituto virtual do corpo, um duplo neural. De notar que ao longo da vida permanecem ligados ao corpo que imitam. (…)

Em resumo, os neurónios referem-se ao corpo, (sublinhado meu) e esta «referência», este incansável apontar para o corpo, é a característica que define toda a história dos neurónios, dos circuitos neuronais e dos cérebros. Creio que esta referência seja o motivo graças ao qual a vontade oculta de viver presente nas células do nosso corpo se pôde transformar numa vontade consciente e dotada de mente. As vontades celulares ocultas viriam a ser imitadas pelos circuitos cerebrais. Curiosamente, o facto de os neurónios e o cérebro se referirem ao corpo também sugere a forma como o mundo exterior viria a ser cartografado no cérebro e na mente. (sublinhado meu) (…) quando o cérebro mapeia o mundo exterior, fá-lo graças à mediação do corpo. Quando o corpo interage com o ambiente que o rodeia, esta interacção provoca alterações nos órgãos sensoriais do corpo, como os olhos, os ouvidos e a pele. O cérebro, por sua vez, mapeia essas alterações e desse modo, indirectamente, o mundo exterior ao corpo adquire forma e representação no interior do cérebro. (…) Imagino que boa parte do espanto quanto à forma como os sentimentos podem surgir no cérebro se deva à subestimação da profunda comunidade entre corpo e cérebro.» (Damásio, 2010: 60-61)

Reforçando a ideia de que «o cérebro humano é um imitador de primeira água», nas palavras de Damásio, e no entendimento que delas podemos fazer, acrescenta ainda o neurocientista e biólogo: «Tudo o que se encontra no exterior do cérebro – o corpo em si, claro está, desde a pele às entranhas, bem como o mundo em seu redor, homem mulher e criança, cães, gatos e lugares, calor e frio, texturas macias e ásperas, sons altos e baixos, o doce mel e o salgado peixe – é imitado no interior das redes cerebrais. Por outras palavras, o cérebro tem a capacidade de representar aspectos da estrutura de coisas e acontecimentos não-cerebrais, onde se incluem as acções levadas a cabo pelo nosso organismo e pelos seus componentes, tais como membros, órgãos do aparelho fonador, e assim por diante. A forma como o mapeamento acontece ao certo não é simples de explicar. Não se trata de uma mera cópia, nem de uma transferência passiva do exterior do cérebro para o seu interior. A montagem levada a cabo pelos sentidos envolve uma contribuição activa do interior do cérebro, disponibilizada desde o início do desenvolvimento, tendo há muito sido descartado o conceito de cérebro como uma tábua rasa. (…) a montagem tem em geral lugar num contexto de movimento.» (Damásio, 2010: 90-91)

Concluo este breve destaque de passagens do pensamento escrito de Damásio, convocado por interposto texto sobre comportamento de actores/performers e espectadores, com a seguinte citação co que fecha O Livro da Consciência e que nos poderá servir de mote para conversação na próxima aula:

«Quando as células do corpo se reúnem numa configuração espacial específica, segundo um plano, elas constituem um objecto.

A mão é um bom exemplo. Ela é composta por ossos, músculos, tendões, tecido conectivo, uma rede de vasos sanguíneos e outra de vias nervosas, e várias camadas de pele, tudo reunido de acordo com um padrão arquitectural específico. Quando um tal objecto biológico se desloca no espaço, ele realiza uma acção, como, por exemplo, apontar para mim. Tanto o objecto como a acção são acontecimentos físicos, no espaço e no tempo. Quando os neurónios dispostos numa folha bidimensional se tornam activos ou inactivos segundo os sinais que recebem, também eles criam um padrão. Quando o padrão corresponde a um objecto ou a uma acção, ele constitui um mapa de outra coisa, um mapa desse objecto ou dessa acção. Assente como está na actividade das células físicas, o padrão é tão físico como os objectos ou acções a que corresponde. O padrão é momentaneamente desenhado no cérebro, gravado no cérebro através da sua actividade. Porque é que os circuitos de células cerebrais não hão-de criar uma espécie de correspondência imagética para as coisas, desde que as célulkas estejam devidamente preparadas para o fazer, funcionem como se espera e se tornem activas quando devem? Por que razão seriam os padrões de actividade momentânea daí resultantes menos físicos do que o eram os objectos e acções iniciais?» (Damásio, 2010: 386)

 

Leituras aconselhadas:

DAMÁSIO, António 2010, O Livro da Consciência – A construção do cérebro consciente, Lisboa: Temas & Debates/Círculo de Leitores. (Será disponibilizado aos alunos o PDF da obra em questão)

MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (Dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, pp. 60-69.

MENDES, Anabela, Revisitação à orgânica conceptual trabalhada por António Damásio em O Livro da Consciência com aplicação ao comportamento humano em artes performativas., in: Rui Pina Coelho (Dir.) Sinais de Cena II-2, Maio de 2017, pp. 105-117.