Democraticidade sonora e representação

6 Dezembro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

DEZEMBRO                                   5ª FEIRA                                          22ª Aula

 

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Retomámos o ensaio de Jacques Rancière O Espectador Emancipado para nos interrogarmos sobre a viabilidade de pôr em prática uma relação entre a Arte e a Política cujo enquadramento nos é dado por um vasto leque de possibilidades entre quem actua e quem especta. Partindo dessa equação verificámos que Rancière suspende as regras que regulam a experiência artística cénica como a conhecemos nas suas diversas manifestações, para lhe apor um outro modelo experimental que, não sendo novo, adquire significado próprio.

A este propósito conversámos sobre como uma arquitectura cénica de proximidade e distância, como aquela que nos chega de vivência em anfiteatros da Grécia e Roma Antigas ao ar livre, em que a distância física entre actores e espectadores era superada pela soberba qualidade acústica desses espaços. Longe ou perto da cena (Skené) todos escutavam tudo da mesma maneira.

A capacidade acústica extraordinária desses lugares simbolizava a dimensão e o alcance daquilo que o ser humano fôra capaz de construir em prol de uma escuta conjunta e democrática.

Já os textos trágicos de renomados autores não tinham por objectivo expressar episódios da vida comum de pessoas cujas relações de conflitualidade e convivialidade pudessem ser reconhecidas por todos, como hoje as entendemos. A função das tragédias era antes a de fomentar, através do mito, episódios que protagonizassem o relacionamento entre deuses e homens, sendo estes os representantes da aristocracia ateniense e não os escravos e os bárbaros que estariam presentes na assistência. Assim, a tragédia grega configurava-se como uma instituição ideológica da pólis, em particular, como referência maior da democracia ateniense ao longo do séc. V a.C., procurando afirmar os valores cívicos desse modelo social e político. A história de vida de escravos e estrangeiros não era alvo de qualquer reconhecimento no âmbito do projecto ideológico e artístico da Pólis.

A intencionalidade da escrita de comédias, satirizando e criticando situações da vida comum dos habitantes de Atenas, não lhes dava o mesmo estatuto de referência atribuído à nobreza e aos heróis que preenchiam os textos trágicos e sua representação. Escravos, bárbaros e mulheres estavam excluídos do exercício político da vida democrática ateniense. As Grandes Dionisíacas eram, de facto, espectáculos para todos e a arquitectura do lugar comprova-o através da sua sonoridade. Era aí que a democracia se exercía em pleno, sem barreiras hierárquicas, sem distinção de culturas, sem contaminação do exercício de poder. A convivialidade democrática transformava-se numa festa de que todos eram participantes: actores e espectadores.

Talvez Rancière tenha pensado atentamente sobre estas questões. Não me lembro de ter encontrado qualquer referência nos seus textos à componente sonora como qualificadora do gesto democrático nos espectáculos atenienses ou romanos.

Percebo, no entanto, que para fazer vigorar a sua proposta de emancipação do espectador e consequente consciencialização do actor, lhe seja necessário inquirir as experiências estéticas conhecidas antes de apresentar a sua proposta de construção de um “corpo de sentido”, isto é, estabelecer uma outra lógica que seja capaz de organizar as coisas entre si, os acontecimentos e a possibilidade de novos significados.

Um novo idioma, como pudemos comprovar com a história do professor Joseph Jacotot de O Mestre Ignorante, não é apenas uma outra língua de que passamos a fazer uso, mas o modo como dela nos abeiramos e com ela convivemos torna-se numa espécie de ruptura face ao que parece e é consensual.

O estabelecimento de novas relações com a Arte acontece quando são estabelecidas novas relações entre realidade e aparência, entre o que é próprio do indivíduo e aquilo que pertence ao colectivo.

Criar aproximação entre actor e espectador é também um acto físico. Mantê-los separados não fomenta «uma nova aventura intelectual» (Rancière, 2010:35)

 

Leituras recomendadas:

- RANCIÈRE Jacques 2010, O espectador emancipado, tradução de José Miranda Justo, Lisboa: Orfeu Negro.