Do Mestre Ignorante ao Espectador Emancipado - Jacques Rancière

20 Novembro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

NOVEMBRO                        3ª FEIRA                               17ª Aula

 

20

 

Saída de Campo – Teatro do Bairro, O mundo é redondo, texto de Gertrude Stein, tradução e dramaturgia de Luísa Costa Gomes, encenação de António Pires. 16.11.2018 21:30-23:30.

 

Saída de Campo – Museu Nacional de Etnologia, Cartas do Novo Mundo, espectáculo baseado na carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel I, e outras cartas de autores diversos, encenação de Miguel Abreu, representação de F. José Oliveira. Esta saída de campo resultou num espectáculo só para nós e a meu pedido. Após a representação tivemos visita guiada e acompanhada de muita informação preciosa ao espólio da Galeria da Amazónia que nos permitiu alcançar um melhor enquadramento de uma das regiões mais sensíveis do Brasil.

 

Concluído o visionamento conjunto destes três espectáculos, encetaremos a partir de agora o diálogo, já iniciado sobre Netos de Gungunhana, e que deverá abranger o que vimos. Talvez venha a ser possível criar diversas pontes entre os três objectos artísticos.

Reclamo pelo diário de bordo de cada um.

 

Iniciámos o estudo do ensaio de Jacques Rancière O Espectador emancipado partindo do acompanhamento ao episódio que dá origem a essa reflexão escrita do filósofo francês. E esse episódio traça-nos o perfil de um homem chamado Joseph Jacotot que é tido como uma figura excêntrica no contexto da sua época, primeiro na França revolucionária e posteriormente no período da Restauração da monarquia constitucional (1814-1830) que repõe e reajusta os valores e princípios do conservadorismo.

A acção de Joseph Jacotot é primeiro traçada por Jacques Rancière no seu livro O Mestre Ignorante - Cinco Lições sobre a emancipação intelectual (2007).

Dessa obra retirei alguns parágrafos que pudessem ajudar a enquadrar o ensaio que temos em mãos. Foram essas passagens que lemos e comentámos na perspectiva de compreendermos o sentido da igualdade das inteligências e do processo de aprendizagem que muito para além vai da transmissão de conhecimentos.


Uma aventura intelectual.

 

•      Em 1818, Joseph Jacotot, professor de literatura francesa na universidade de Lovaina, viveu uma aventura intelectual.

•      Uma carreira longa e agitada dever-lhe-ia ter dado a possibilidade de estar ao abrigo de surpresas: fizera dezanove anos em 1789. Ensinava então Retórica, em Dijon, e preparava-se para seguir a profissão de advogado. Em 1792, servira como artilheiro no exército da República. Depois, a Convenção viu-o sucessivamente como juiz de instrução, instrutor no Departamento da Pólvora, secretário do ministro da Guerra e substituto do director da Escola Politécnica.

•      Regressado a Dijon, ensinou Análise, Ideologia e as línguas antigas, Matemática pura e transcendental e Direito. Em Março de 1815, a estima dos seus compatriotas fizera dele um deputado. O regresso dos Bourbons obrigou-o ao exílio e obteve, através da generosidade do rei dos Países Baixos, o lugar de professor a meio salário. Joseph Jacotot conhecia as leis da hospitalidade e contava passar uns dias tranquilos em Lovaina.

•      O destino decidiria as coisas de outro modo. As aulas do humilde professor foram, com efeito, depressa apreciadas pelos estudantes. Entre os que as quiseram desfrutar, um bom número desconhecia a língua francesa. Joseph Jacotot, por seu lado, desconhecia completamente o holandês. Não existia portanto língua em que lhes pudesse ensinar aquilo que eles exigiam. Era necessário responder ao seu voto. Para tal, era necessário estabelecer, entre eles e ele, o elo mínimo de uma coisa comum. Ora publicara-se, por esa altura, em Bruxelas, uma edição bilingue do Telémaco [de François Fénelon]. A coisa comum fora encontrada e o Telémaco entrou deste modo na vida de Joseph Jacotot. Mandou enviar o livro aos estudantes, e, através de um intérprete, pediu-lhes que aprendessem o texto em francês com a ajuda da tradução existente. Quando conseguiram compreender a metade do primeiro livro, fê-los repetir sem cessar o que haviam aprendido depois de lerem o resto para serem capazes de o contar. Foi uma solução dada pelo acaso mas, também, em pequena escala, uma experiência filosófica muito ao gosto do que se queria no século das Luzes. Joseph Jacotot, em 1818, continuava a ser um homem do século anterior.

•      Contudo a experiência ultrapassou as suas expectativas. Pediu aos estudantes assim preparados para escreverem em francês sobre o que pensavam de tudo o que haviam lido. «Esperavam-se barbarismos horríveis, de uma impotência talvez absoluta. Como, de facto, todos aqueles jovens, privados de explicações prévias, poderiam ter compreendido e resolvido as dificuldades de uma língua nova para eles? Que importa! Era preciso ver onde os teria conduzido esta rota aberta por acaso, quais seriam os resultados deste empirismo desesperado.

•      Qual não foi o seu espanto ao descobrir que aqueles alunos, entregues a si próprios, se haviam saído desse passo difícil tão bem como se tivessem sabido muito francês. Não seria então preciso mais do que querer para poder? Seriam então todos os homens capazes de compreender virtualmente o que outros haviam feito e compreendido?» (Félix e Victor Ratier, 1818: 155)

•      Tal foi a revolução que esta experiência do acaso provocou no seu espírito. Até então, acreditara naquilo em que todos os professores conscienciosos acreditam: que o grande objectivo do mestre é o de transmitir os conhecimentos que tem aos alunos, a fim de os educar, por níveis, até à sua própria ciência. Sabia, como eles, que não se tratava e de cumular os alunos de conhecimentos e de os fazer repetir como papagaios, mas também que era necessário procurar os caminhos do acaso, onde os espíritos se perdem, ainda incapazes de distinguir o essencial do acessório e o princípio da consequência. Rancière, 2010: 7-9)

•      (…) Assim raciocinavam todos os professores conscienciosos.

•      Assim tinha raciocinado e agido Joseph Jacotot, ao longo de trinta anos de profissão. Ora eis então que o grãozinho de areia vinha por acaso introduzir-se na máquina. Ele não dera explicação alguma aos seus «alunos» sobre os primeiros elementos da língua. Não lhes explicara a ortografia e as conjugações. Eles tinham procurado, sozinhos, as palavras francesas correspondentes às palavras que conheciam e a razão das suas desinências. Haviam aprendido, sozinhos, a combiná-las, para fazer, por sua vez, frases em francês: frases essas em que a ortografia e a gramática se tornavam cada vez mais exactas, à medida que avançavam no livro; mas, sobretudo, frases de escritores e não de alunos de escola. Seriam então as explicações do mestre supérfluas? Ou, se o não eram, a quem e a quê seriam porventura úteis? (Rancière, 2010:10)

 

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https://projetoutopia.wordpress.com/2015/12/13/as-aventuras-de-telemaco-francois-fenelon/