Inverter os papéis. Uma nova performance?

4 Outubro 2018, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

 

OUTUBRO                                     5ª FEIRA                               5ª Aula

 

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Abrimos a aula com um pequeno vídeo do Youtube que nos mostrava Marina Abramovic, em 2010, no MoMa de Nova Iorque, trajando vermelho do pescoço aos pés, sentada numa cadeira. Tinha então lugar a performance The artist is present, a que Frazzetto se reporta no livro em estudo (p. 205) e onde, segundo Frazzetto, Abramovic rejeita o teatro como «uma falsidade». Defende a artista que, ao contrário do que acontece no teatro, na Performance Art «as emoções são reais.» (ibidem)

Esta é uma questão antiga e Frazzetto encontra uma solução plausível apelando à capacidade humana «para distinguir entre o verdadeiro e o falso, o real e o imaginado.» (p. 206)

Nem sempre esta linha de fronteira é assim tão evidente. Nós como espectadores bastantes vezes nos interrogamos sobre o que, sendo alvo da nossa observação, nos não deixa assim tão tranquilos quanto à separação destas categorias. Uma boa comédia, por exemplo, bem gizada e bem representada, é capaz de pôr em causa o que Frazzetto afirma. Ocorre-me um autor do séc. XIX francês, Eugène Labiche, que com o seu feroz humor e uma aceleração rítmica da contracena nos faz muitas vezes perder o pé entre os vários campos da nossa capacidade perceptiva.

Aceitemos, entretanto, que Marina Abramovic defende bem os seus argumentos a favor da performance artística, mas aquilo que nenhum de nós pode aceitar é que a representação teatral, porque é um desdobramento, seja em si arte falsa. O treino consciente dos actores para dar vida à representação é com certeza tão sério e tão exigente quanto a moldagem entre mente e corpo a que se dispõe a artista sérvia.

 

Voltemos à sequência de 3’37 do vídeo, que nos mostra Marina Abramovic a receber espectadores anónimos, e que em frente dela se vão sentando um a um, por cerca de um minuto, tendo a separá-los uma mesa. Cenário simples, em amplo espaço. O lugar de Marina Abramovic e de cada anónimo está delimitado ao nível do chão por adesivo branco. Deste procedimento resulta a compreensão desse espaço como o lugar da acção em tempo real. O fora e o dentro adquirem a permeabilidade entre o antes e o depois, onde o simulacro do íntimo se joga dentro do quadrado. A performance tem regras e o museu está vigilante.

O exercício destinava-se a estabelecer contacto pelos olhos e a testar as reacções dos voluntários. Muitos controlavam-se como a artista, oferecendo à câmara que os filmava a superfície lisa de um rosto. Outros afivelavam uma máscara que não sabemos se era capaz de controlar tendões e fibras alojadas sob a pele. E havia aqueles que procuravam alívio para o excesso de dor e sofrimento que consigo transportavam. Para esses o encontro com Abramovic, com uma mesa de permeio, estaria em aguardo o tempo que fosse preciso até se tornar uma realidade. O ritual estabelecido e em multiplicação sucessiva cumpria uma espécie de santificação, adoração da artista, visível nas qualidades da sua arte e do seu carácter. Abramovic é um ser inabitual. E justamente àqueles que mais fragilizados se mostrassem diante de Marina, afinal uma presença real e verdadeira, maior seria a esperança de alívio. Vimos correr lágrimas em rostos de mulheres e de homens que afinal não se encontravam no consultório de psiquiatria, de psicologia, mas, face a face com outro ser, a fim de se confrontarem com as suas emoções. Exercício difícil e ainda por cima público. Que ficámos nós a saber destas pessoas? Teríamos nós sido estimulados a fazer o mesmo?

E ela, que permanecia sentada por sete horas e meia seguidas? Conduzir uma performance baseada no auto-controle, exposta num grande museu de Nova Iorque, que significado terá? Seriam as suas temporalidades idênticas às dos seus observadores/observados? Qual o papel do acaso nesta performance?

Pudemos observar inexplicáveis manifestações de comoção, mais ou menos contida, que atingiu anónimos, colunáveis como Lady Gaga que não chegámos a ver, e que se serviram de um lugar público com se fosse íntimo. O instante do primeiro encontro dos olhos parecia mudar tudo o que antes fora, e que tanto para Abramovic como para os expostos correspondia de facto a uma presença real.

Abramovic oferecia consolo controlado, agradecia intimamente ter sido escolhida e procurada. Mas a sua postura era claramente a de quem controlava a acção. A performance era dela, a arte em presença, como explica o título, justificava a sua mostração, após criadas as condições para que ela acontecesse. O elevado número de horas (sete e meia) sentada era uma elevada fasquia que Abramovic bem conhece e que até já antes superara.

Tudo parecia seguir um curso mais ou menos previsto, aceite por ambas as partes. O público do MoMa podia escolher entre ser protagonista, distrair-se conversando, circular com ou sem destino, observar outros sentados na cadeira.

A entrada de Ulay (artista e fotógrafo, ao tempo já com 74 anos de idade, e o grande amor de juventude de Marina Abramovic) na sala onde decorria a performance deixa-nos algumas dúvidas sobre a casualidade daquela proposta de encontro. Talvez outros dos presentes na sala, e próximos de ambos, conhecessem a intenção do artista alemão em surpreender a mulher que não via há muitas décadas. Importante foi para nós podermos acompanhar Ulay até se sentar em frente a Abramovic. O inesperado, repentino e decidido movimento do corpo dele que parecia querer superar de uma só vez a distância, um infinito mundo em que nenhum deles soubera do outro, replica-se em poderosos gestos que o precisam de fortalecer para que o perturbado estado emocional não o faça sucumbir. Este comportamento terá ao longo do minuto estabelecido um efeito de contraponto muito poderoso, com fissuras visíveis a cada segundo, uma vez que passamos a assistir à inversão de papéis: é a Ulay que cabe agora desempenhar o papel de Marina, de conforto e apaziguamento, de criação de confiança. Ulay fá-lo com muita dificuldade, também ele profundamente emocionado. Na fragilidade do corpo de Marina e, em particular, no seu rosto, espelham-se centenas e centenas de anónimos que diante dela se mantiveram leais a si mesmos. A presença real efectiva-se de modo surpreendente quando as mãos de ambos quebram a longa ausência sem toque. Neste caso, não basta o olhar, nem as lágrimas da artista. A empatia precisou de emoção de fundo.

 

Leituras recomendadas:

DAMÁSIO, António 2000. O Sentimento de Si – O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, Lisboa: Publicações Europa-América. (só para citação)

DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água. (leitura complementar segundo os interesses de cada um)

DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 176-213.

MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (Dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, pp. 60-69.

WARBURG, Aby, 2010, Madrid: Ediciones Akal, S. A.. (PDF enviado aos alunos)

                                 

Vídeo observado:

https://www.youtube.com/watch?v=OS0Tg0IjCp4