Somos emoção. Tornamo-nos razão.
27 Setembro 2018, 18:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
SETEMBRO 5ª FEIRA 4ª Aula
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Abandonámos temporariamente o trabalho de interpretação da pequena obra de Didi-Huberman Que emoção! Que emoção?
Destacámos ao longo de três aulas a prevalência progressiva em termos histórico-reflexivos do ponto de vista do autor francês que claramente defende a presença da emoção como um elemento essencial dos comportamentos da vida humana e dos animais.
O facto de ele nos ter elucidado sobre a pouca importância que foi sendo atribuída ao longo dos tempos pela filosofia racionalista às manifestações emocionais, não pôs em causa a sua intrínseca defesa de um conceito como pathos e do que a ele está associado: «Esta história é, justamente, a da palavra grega pathos, que é tão importante para os autores trágicos desta época – Ésquilo, Sófocles, Eurípedes – quanto, posteriormente, foi a palavra logos para os grandes filósofos exploradores da ‘linguagem’ ou da ‘lógica’, Platão e Aristóteles.» Didi-Huberman, 2015: 20)
Daqui podemos deduzir que a aproximação ao conceito de emoção não recebeu grandes favores dos filósofos da Grécia Antiga, posição que viria a influenciar o pensamento pós-socrático na cultura ocidental e até ao Século das Luzes. No caso dos filósofos gregos, e em particular Platão, obras como o Banquete e o Fedro, por exemplo, tratam de questões relacionadas com o amor, o erotismo, o desejo. O que está, porém, em causa não é a opção por temas e assuntos, mas é o tipo de discurso argumentativo utilizado nos diálogos. É através desta discursividade organizada a partir do logo, da razão, tão cara à filosofia antiga a partir do séc. V a. C. e tão pouco cara às tragédias de então, que é possível escrutinar o que aproximou os gregos do pathos ou do logos. Neste «campo de batalha» excepções houve também: a voz de Diotima de Mantineia no Banquete de Platão, os poemas de Safo sobre a experiência amorosa.
Didi-Huberman procura reabilitar a atenção que poderemos dar ao campo emocional através da contemplação de imagens e igualmente estabelecendo uma genealogia do termo pathos considerado na sua vertente passiva e activa. (Didi-Huberman, 2015: 21-30)
È na p. 30 da conferência que pela primeira vez deparamos com o entendimento das emoções de um ponto de vista ético e como possibilidade de relacionamento activo com outros, apresentada como um comprometimento social mútuo, como uma extensão do que é particular para o universal, como uma forma de empatia, ou sua ausência, mas que claramente diz respeito não apenas a nós mas a todos. Como diz Didi-Huberman, «A emoção não diz ‘eu’: (…)» E este reportar-se a todos vem recuperar o que em nós sobrevive de mais primitivo (como dizia Darwin). O primitivismo das emoções contém a sua universalidade.
«As emoções passam por ser gestos que efectuamos sem nos darmos conta de que vêm de muito longe no tempo. Esses gestos são como os fósseis em movimento. Têm uma história muito longa – e muito inconsciente.» (Sublinhado meu) (Didi-Huberman, 2015: 32)
É neste contexto de alargamento da ideia de emoção que Didi-Huberman convoca para o espaço da sua conferência o historiador de arte alemão Aby Warburg (1866-1929).
Em Warburg encontramos um retorno ao pathos agora sob a designação de «fórmulas de pathos» que significam o movimento estratificado (aquilo que um fóssil deixa ver), a moção fossilizada, cristalizada (como nas emoções) das imagens transmitidas pela memória histórica. Estas imagens, segundo Warburg, pedem a nossa atenção como polarizações de si mesmas e em relação a outras imagens, e podem ser «reactivadas na sua significação, resgatadas, assumidas pelo complexo expressivo de uma determinada época.» (Palavras de António Guerreiro no seu ensaio O Pathosformel e a imagem dialéctica; correspondências entre Warburg e Benjamin in: Anabela Mendes et altri (org.) Qual o tempo e o movimento de uma elipse? – Estudos sobre Aby M. Warburg, Lisboa: Universidade Católica Editora, p. 76)
Talvez que esta proposta nos possa interessar, se pensarmos como Warburg equacionou o seu megalómano (mas bem-vindo!) projecto, já na última fase da sua vida, de criar um atlas de imagens em circulação e mutação a que deu o nome de Mnémosine (a deusa da Memória).
Que terá este atlas de imagens a ver com as emoções? Não é sobre sequenciação histórica nem sobre factos que essas imagens nos inquirem. Elas pedem para ser reavivadas, querem pertencer-nos na nossa contemporaneidade e agitam-nos, emocionam-nos na sua plenitude a descobrir. E porquê? Porque são elas movimento, emoção, que se nos atravessa no caminho?
Didi-Huberman utiliza na sua conferência uma palavra-chave: «as imagens são uma espécie de cristais (…)» (Sublinhado meu) (Didi-Huberman, 2015: 35), na acepção de receptáculo visível que preserva alguma coisa, sendo que essa coisa são os próprios gestos que se transmitem de ser para ser, e que ao mesmo tempo criam «moção», «movimento».
As imagens transportam consigo uma genealogia antiquíssima (lembremo-nos das pinturas rupestres de há milhares e milhares de anos) que podemos equiparar ao funcionamento das emoções. Saliento aqui as «emoções de fundo» que, segundo António Damásio, na sua obra O Sentimento de Si – O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência, exprimem «o núcleo interior da vida e o seu alvo é mais interno do que externo.» (Damásio, 2000: 73)
Quer isto dizer que apesar de ser a exterioridade das imagens que nos atrai, é dentro de nós que se prepara a capacidade de as recebermos.
Diz-nos então Damásio: «Quando sentimos que uma pessoa está «tensa» ou «irritável», «desanimada» ou «entusiasmada», «em baixo» ou bem-humorada», sem que uma única palavra tenha sido dita para traduzir quaisquer destes possíveis estados, estamos a detectar emoções de fundo. Conseguimos detectar emoções de fundo através de pormenores subtis relacionados com a postura corporal, com a velocidade e contorno dos movimentos, com modificações mínimas na quantidade e velocidade dos movimentos oculares e no grau de contracção dos músculos faciais.
Os indutores das emoções de fundo são habitualmente, internos.» (Damásio, 2000: 73)
Para concluir, demos ainda atenção a Damásio: «(…) as emoções de fundo podem ser causadas por um esforço físico prolongado – desde o «high» (sentir-se bem) que se segue ao jogging, até ao «low» (sentir-se em baixo) devido a um trabalho físico desinteressante e monótono ~pelo remoer de um a decisão difícil de tomar – uma das razões que explicam a tristeza de Hamlet – ou, pela antecipação de um acontecimento magnífico que nos aguarda.» (Damásio, 2000: 73.)
Umas páginas mais adiante do seu livro aqui citado, Damásio acrescenta: «O efeito purificador, catártico, que, segundo Aristóteles, deveria fazer parte de todas as grandes tragédias baseia-se na suspensão súbita de um estado de medo e pena até aí mantidos sem quartel. Muito tempo depois de Aristóteles, Alfred Hitchcock construiu uma brilhante carreira neste simples arranjo biológico e Hollywood nunca mais deixou de nele apostar. (…) No que diz respeito à emoção, não temos maneira de escapar à armadilha que a natureza nos preparou. Caímos nela à ida ou apanhamo-la à vinda.» (Damásio, 2000: 80-81.)
Leituras recomendadas:
DAMÁSIO, António 2000. O Sentimento de Si – O Corpo, a Emoção e aq Neurobiologia da Consciência, Lisboa: Publicações Europa-América.
DARWIN, Charles 2006. A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, Tradução de José Miguel Silva, Lisboa Relógio D’Água.
DIDI-HUBERMAN, Georges 2015. Que emoção! Que emoção?, tradução de Mariana Pinto dos Santos, Lisboa: KKYM.
FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como Sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 176-213.
MENDES, Anabela, Notas para uma sociologia das artes do espectáculo – Reflexão sobre a utilização de parâmetros cognitivos aplicados a públicos de teatro e outras artes in: Maria Helena Serôdio (Dir.), Sinais de Cena 17, Junho de 2012, pp. 60-69.
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