Atravessar continentes com música - Lambarena - Bach to Africa
2 Março 2020, 10:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
MARÇO 2ª FEIRA 5ª AULA
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Saídas de Campo ainda durante esta semana
GLIMPSE, concepção e performance de JOSEFA PEREIRA, dia 7 de Março, Galeria Quadrum, 19:30, duração de 45’.
ORÁCULO, concepção e coreografia de SARA ANJO e TERESA SILVA, dia 7 de Março, Teatro do Bairro Alto, 21:30, duração 60 ‘.
Duas semanas depois da última aula senti necessidade de aferir com os alunos o que estava a acontecer com as diversas propostas em andamento e no âmbito dos seus doutoramentos em preparação. Esperava receber material para leitura e pouco ou nada chegara.
Diversas foram as situações e por isso as detalho agora aqui.
Ouvimos João Henriques que manifestou a explícita vontade de se dedicar a questões metodológicas nesta fase da sua investigação. Mais do que a dedicação a aspectos teóricos relacionados com a voz e sua expressão artística, e já enunciado em documentação entregue, o aluno pretende abrir diversas possibilidades laboratoriais que lhe permitam fundamentar a importância da Direcção Vocal no «contexto teatral português contemporâneo.» A sua actividade artística e técnica de longa data neste âmbito fomenta o interesse em recolher informação a que dará tratamento adequado e aplicativo e que poderá ser discutida em aula.
Aguardamos de Cyntia Floriani a apresentação de uma lista bibliográfica actualizada relacionada com a sua investigação dedicada prioritariamente ao espectador cego de produções teatrais. Continuam a ser relevantes as suas exposições sobre a observação de situações concretas vivenciadas com o seu grupo de trabalho em situação de prática artística.
O mesmo pedido de informação e actualização de dados investigativos foi feito a Elsa Almeida, considerando que o índice apresentado pela aluna estará desactualizado em relação ao estado actual da sua investigação na área da dança clássica que é também o seu campo de exercício profissional.
Consuelo Toral tem como incumbência criar pensamento sistematizado a partir do vasto campo prático da sua experiência na área de formação de intérpretes para cena. É seu intento dedicar-se ao estudo da relação pedagógica com a criação, fenómeno que a ocupa há longo tempo. Aguarda-se documento estruturante como anteriormente pedido.
Karla Aguilar encontra-se em leituras de três obras mostradas em aula e que a aluna considera como um primeiro passo na área da reflexão teórica sobre corporalidade, o seu assunto de estudo. Aguarda-se a chegada de fichas de leitura sobre as obras exibidas para que com elas possamos discutir resultados da sua reflexão escrita. Um índice provisório sobre as ideias em gestação foi igualmente pedido. Finalmente Luana Proença, com vastíssima experiência no campo da Improvisação como género artístico deverá poder fornecer pequenos ensaios sobre as questões colocadas em documento prévio.
A todos deixo campo aberto para pequenos exercícios em aula sobre as suas investigações.
Para a aula de hoje reservei uma proposta auditiva como estimulação multissensorial, exercício de memória, cruzamento de culturas, experiências musicais e de canto entre repertório europeu e africano, homenagem a um filantropo.
Refiro-me a Lambarena – Bach to Africa, obra musical e de canto que reúne e intercepta partituras de Johann Sebastian Bach e música tradicional do Gabão, e que foi produzida em 1992 em Paris como projecto memorial a Albert Schweitzer, médico e melómano alemão (1875-1965) que viria a ser prémio Nobel da Paz em 1952, justamente por defender a ideia da “Irmandade das Nações”.
Porquê Gabão? Porque não outras regiões de África? A resposta é simples mas consistente. Albert Schweitzer e a sua mulher Hélène Bresslau decidiram em certa altura das suas vidas que as iriam dedicar a quem precisasse de ajuda médica e conforto na doença. O projecto de ambos nasce como resposta a um pedido urgente de clínicos na então colónia francesa do Gabão. É de Lambaréné que vem esse pedido que o casal Schweitzer de imediato abraça. Aí viriam a construir um hospital a custo próprio, hoje ainda em actividade e dedicado ao estudo das doenças tropicais. O hospital com o nome do médico filantropo nasce de um galinheiro, onde Schweitzer e a sua mulher improvisavam dia a dia a recepção para consulta e tratamento de cerca de 40 pacientes. Pela primeira vez em Lambaréné foi utilizado o éter como forma de adormecimento em doentes que precisavam de anestesia. Para estes o procedimento era conhecido como “pequena morte”, pois dela acordavam ao fim de algum tempo em pós-operatório.
Paralelamente a esta actividade, Schweitzer, que também era filósofo e teólogo, havia encetado muito cedo uma relação de amor com Bach. Exímio organista, aceita com entusiasmo a ideia do seu mestre Charles-Marie Widor de editar um estudo sobre o músico de Leipzig e a sua obra. Esse estudo foi publicado em 1905 com o título J. S. Bach: le musicien-poète. Na altura e de acordo com informação disponibilizada no livrinho que acompanha o CD do qual escutámos em aula algumas faixas, Albert Schweitzer distinguia a música de Bach «pelo seu carácter religioso e místico, comparando o poder expressivo da mesma ao das forças cósmicas do mundo natural.» (p. 3)
Não admira, portanto, que exactamente esta simbiose pudesse ser transposta para um território de abandono e miséria, com gente pobre e sem meios de subsistência que foi o que Schweitzer encontrou no final da primeira década do séc. XX em Lambaréné. Colocar na rua um gramofone e nele fazer escutar a música que tanto amava e conhecia era uma forma de dividir com outros alimento espiritual mas também oferecer um envolvimento do corpo tão caro à música de Bach. O retorno desta experiência vezes sem conta repetida porque os lambaranenses gostavam de ouvir Bach, acabou por promover uma relação de troca com o casal Schweitzer. A enorme gratidão pelo acompanhamento médico regular, pelos laços de amizade estabelecidos entre os autóctones e o médico-músico alemão tornaram-se reviventes com a edição de Lambarena - Bach to Africa. A história da produção deste album reforça uma relação antiga e amistosa na memória de já muito poucos sobreviventes de época, continuada porém em gerações actuais.
O que este projecto desenvolveu, e considerando que se trata de obra musical e coral da tradição europeia e gabanesa, ultrapassa o âmbito desse propósito na medida em que o que verdadeiramente conta é o implementar de dimensão fraterna entre povos e culturas que tornam universal o sentido de humanidade.
https://www.lematin.ch/suisse/docteur-albert-schweitzer-celebre-gabon/story/17726145
O que acabo de escrever era-me desconhecido ao tempo em que pela primeira vez escutei Lambarena – Bach to Africa.
Vivia então um tempo intenso e feliz rodeada de algumas dezenas de intérpretes (música, canto, dança, teatro) com quem preparava Noite e Som Amarelo de Wassily Kandinsky para o CCB.
Menciono esta experiência porque ela foi rampa de trabalho a partir de Lambarena.
A escuta do CD tornou-se uma alegria matinal e fechava o dia para que o sono fosse bom. Passei a dançar por toda a casa e a tentar o canto, nem sempre bem sucedido, porque as vozes infantis são isso mesmo e eu sou fumadora e adulta.
Escutava paralelamente ao CD, cantatas, A Paixão de São João, Prelúdios, Fugas, Gigas, tudo de Bach. De repente estava a descobrir um Bach que já era meu mas que não soara até então da mesma maneira. Neste encantamento que durou muito para além da estreia do espectáculo, ocorreu-me levar para os ensaios Lambarena. Não dei muitas explicações aos intérpretes de dança e teatro, quis apenas que escutassem as faixas do CD. O processo assim durou três dias. Ao quarto dia pedi que escolhessem uma única faixa e que a interpretassem. A princípio o exercício não correu bem porque a intercepção dos dois tipos de música lhes confundia o espírito. Diziam: «Bach não tem nada a ver com música do Gabão. São outros instrumentos, os ritmos também não se ajustam uns aos outros.» Esta era a resposta do bloqueio mental que impedia que recebessem Lambarena como obra sintéctica. Contei-lhes um pouco da história de vida de Albert Schweitzer e voltei a pedir que se concentrassem na música. Criaram pequenas coreografias, primeiro a medo mas depois com liberdade. O aproveitamento do que fizeramos nestes ensaios com Lambarena respondeu à diversidade de propostas dos textos de Kandinsky e não ao resultado final do que iriamos apresentar.
Engraçado foi ouvir alguns dos intérpretes a trautear faixas de Lambarena quando íamos à cantina do CCB jantar ou quando faziam aquecimento de voz (sem Director de Voz, claro) e movimento para os ensaios no espaço cénico.
No campo das experiências com Lambarena refiro ainda e num contexto de sensibilização à música clássica em recriações contemporâneas (Jacques Loussier, entre outros), a singularidade do CD que escutámos em conjunto, apresentado numa turma de licenciatura na cadeira de Teoria e Estética das Artes do Espectáculo.
A reacção dos alunos nasceu no primeiro momento em que se iniciou a audição do CD. Espanto, perplexidade e corpos sentados em movimento. Ao som de Sankanda/Lasset Uns Den Nicht Zerteilen (faixa 2) levantaram-se e começaram a dançar. Juntei-me a eles e assim seguiu a aula até ao fim. Saíamos às 20:00. Não houve perguntas sobre o que era aquilo. Enviaram alguns por e-mail poemas, curtos textos de alegria partilhada. Na aula seguinte conversámos sobre a experiência e voltámos a dançar juntos.
Continuo a dançar com este Bach e com os cantares do Gabão.
Endereço aconselhado
https://www.youtube.com/watch?v=EyNTCyPFFJA
CD
Lambarena – Bach to Africa (1993)
Espace Afrique. D’aprés une idée originale de Mariella Berthéas