Byung-Chul Han em diálogo com Kant

30 Março 2020, 10:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

MARÇO                                2ª FEIRA                               9ª AULA

 

 

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Desejo fazer uma correcção ao que antes afirmei sobre o facto de só termos alunas estrangeiras. Tal não corresponde à verdade. A Elsa Almeida, aluna regular e que também esteve presente na nossa 1ª aula por Skype, é portuguesa e português é o João Henriques, ambos por todos muito estimados.

O espírito com que estamos a colaborar uns com os outros é de elevado nível de responsabilidade e, por estranho que pareça, tornámo-nos mais atentos uns aos outros. Mantemos o propósito de salvaguardar não só o trabalho realizado até 11 de Março, em regime presencial, como temos criado novas propostas que poderemos desenvolver em conjunto. É o caso de questionários realizados por alguns alunos com aplicação a terceiros e que iremos discutir a partir da próxima aula.

Pequenas tarefas (orais e escritas) continuam a acontecer e a merecer atenção individualizada (por e-mail). Verificámos não ser possível a realização de laboratórios como prevíramos antes. O trabalho final de conclusão do seminário continua para todos como um objectivo a realizar.

Dentro do actual contexto de isolamento compulsivo, virarmo-nos para o exterior através de leitura e reflexão pode contribuir para que relativizemos o modo como estamos a viver estas semanas. Pensarmos noutros lugares do planeta e nas consequências de operatividade de outras culturas e religiões, de outros sistemas políticos, faz-nos sair da tragicidade da pandemia europeia e planetária, ainda que não dos seus efeitos.

Sermos assoberbados AO MINUTO, AO SEGUNDO pelo caso A e pelo caso B, pela situação C e pelos números diários que correm mundo e vêm ao nosso encontro no ecran e em todos os meios de comunicação disponíveis, são factores de alerta que contribuem para a nossa desestabilização que, apesar disso, tem de ser mantida como uma força a nosso favor. Precisamos de um sinal de esperança, precisamos de entender que esta Peste Negra pode ser combatida de outras maneiras que não aquelas a que nos estamos a habituar, e que sendo as possíveis e recomendadas de boa fé e em nome da nossa salvação, devem considerar a experiência  de lugares por onde a pandemia já passou e onde se vive uma fase de rescaldo, se bem que sejam breves as certezas e o que nos assola é a dúvida. Epidemiólogos, politólogos, sociólogos, filósofos, mas também gente comum, mantêm uma coincidente unanimidade sobre o modo como a Ásia enfrenta este flagelo.

Recomendo a leitura de Coronavírus e o choque de civilizações de Bruno Maçães, Revista Expresso, 21.3.2020 (edição em papel), pp. 30-31.

Na linha do artigo de opinião acima recomendado, disponibilizei a todos tradução do alemão para português da reflexão do filósofo sul-coreano e alemão Byung-Chul Han (10 páginas) com o título «Não deveríamos deixar a razão ao vírus».

Constatei que a leitura foi proveitosa e que ela nos proporcionou uma boa discussão nomeadamente sobre o que distingue o oriente do ocidente em termos de cultura médica e de protecção de cidadãos. Como operam os sistemas políticos democráticos ou totalitaristas e como reconhecemos variações significativas quer nuns, quer nos outros, apesar de os modelos serem na sua essência apenas dois: protecção de dados e não-protecção de dados. Se por um lado a China nos aparece como o mais sofisticado exemplo de limitação das liberdades individuais, mas teoricamente empenhada em nome da prevalência do interesse colectivo, verificamos que o modelo adoptado pelo Japão, Hong Kong, Singapura, Coreia do Sul, entre outros, não é muito diverso do chinês, do ponto de vista da utilização de meios que exercem vigilância digital sobre os cidadãos. Já os regimes ocidentais com a sua protecção de dados deverão talvez equacionar finalmente, numa situação como esta, a adopção do modelo asiático dos Big Data e do dataísmo, considerando todos os perigos que essa opção possa vir a ter.

Interessante me pareceu ser o título que Byung-Chul Han deu ao seu texto. No original o autor utiliza a palavra “Vernunft” a propósito do vírus – ao vírus não cabe “substituir a razão.” (p. 8) O que é que isto quer dizer? Isto quer dizer exactamente que depois da pandemia se ter esvaziado (o vírus é um morto-vivo) é preciso que se dê uma radical mudança nas sociedades contemporâneas que, preocupadas em sobreviver, devem antes querer viver “de forma mais pacífica e mais justa.” (p. 8) É aqui que devemos considerar que a capacidade de concretizarmos a realização de uma sociedade que seja a nosso favor e nos traga benefício individual e colectivo deverá resultar das pequenas acções que todos nós compreendemos e somos capazes de fazer como exercício prático e ético e que não dependa directamente da acção do vírus.

De certo modo existe um paralelismo ideológico entre o que Byung-Chul Han defende e aquilo que constituiu o grande estandarte do séc. XVIII, na Alemanha, e em geral por toda a Europa, no sentido de se criarem condições para que o ser humano fosse capaz de sair da sua menoridade mental de que ele próprio era culpado. Era isto que Kant advogava ao participar num concurso de eruditos sobre: O que é a Aufklärung? (Iluminismo), em 1784. Quanto à menoridade, refere o filósofo, “é a incapacidade de se servir do seu próprio entendimento sem orientação de terceiros.” Mais adiante ele continua: “E ele próprio é culpado dessa menoridade quando as causas desta se não encontram em deficiências do entendimento, mas sim na força da decisão e da coragem para se servir dele sem orientação de terceiros. Sapere aude! (Ousa saber!)

A proposta kantiana dirige-se a cada indivíduo por si numa perspectiva política e ideológica do uso da liberdade. E essa vontade de liberdade iria conduzir cinco anos depois à Revolução Francesa e conduzira já à Revolução Americana.

Parece que estamos hoje muito longe destes princípios que ditavam como pensamento uma tentativa de mudança radical nas sociedades ocidentais de setecentos. Será que o princípio ainda não se esgotou? Defensor da filosofia crítica, Kant procura alcançar um compromisso entre indivíduo e classe (a burguesia), fomentando uma nova mentalidade de responsabilização que viria a caracterizar a sociedade alemã durante o período da Aufklärung e épocas seguintes.

Byung-Chul Han faz apelo à natureza prática da razão (Vernunft), ao uso da razão crítica, ainda que apoiada no seu ensaio em exemplificação a que acedemos sem qualquer problema, porque o que o filósofo menciona nos diz respeito e nos afecta. A dimensão especulativa da sua proposta só nos é dada a ler e a apreciar depois de exposta uma realidade de todos conhecida a nível planetário.  O paradigma oriente – ocidente estrutura o seu pensamento. E justamente essa realidade sendo conhecida nos seus efeitos, escapa-nos do ponto de vista da ciência médica que continua muito esforçada e exaustivamente à procura e em plano colaborativo de como enviesar o caminho ao vírus de modo a que ele se auto-exclua e não nos impeça de voltarmos a uma normalidade.

A razão tem de estar do nosso lado. É a nós que compete cortar as voltas ao vírus. Somos nós que temos de perceber que ele actua com uma venda nos olhos como infectador do mundo.

Voltando ainda a Kant e ao seu uso público da razão de que derivam os limites da própria liberdade individual (o indivíduo é livre de se servir do seu próprio entendimento!), mas também o facto de que é preciso ter consciência de que as mentalidades devem sofrer uma transformação, sem contudo porem em causa os alicerces da sociedade e do Estado. Assim era no séc. XVIII na Alemanha. A convergência de interesses em nome da tradição do absolutismo esclarecido era-o também em nome da tolerância. Difícil a conjugação entre estes objectivos, sabendo-se que o uso privado da razão dizia respeito à função que cada um desempenhava dentro da sociedade civil.

As democracias ocidentais assentam os seus pilares nesta e em outras questionações e pressupostos que, a pouco e pouco, foram criando o terreno para implementar os valores consagrados pela Revolução Francesa, independentemente dos seus fracassos e horrores. Apesar disso e por causa disso, o avanço da História moderna e contemporânea tem sido manchado, como sabemos, por terríveis pandemias que não veiculam qualquer vírus que brota da Natureza e em nós se instala.

Cabe aqui uma breve menção à razão especulativa (Verstand) que Byung-Chul Han não invoca declaradamente no seu escrito. Esclarecer e emancipar vão de braço dado com o modo como nos servimos do próprio entendimento com correcção, “de forma segura e sem tutelas”, como refere Kant no seu pequeno ensaio. Desta perspectiva a relação entre o pensamento e a acção práticos e a reflexão especulativa não coincidem quanto aos seus protagonistas: o cidadão e o Estado. Diz Kant: “Mas também só aquele que, ele próprio esclarecido, não teme sombras, mas ao mesmo tempo dispõe de um numeroso e disciplinado exército que garanta a tranquilidade pública, poderá dizer aquilo que um Estado livre não ousa: raciocinai quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei! De tal modo esta afirmação contém um sentido estranho e inesperado, para as coisas humanas, como acontece, de quase tudo aí é paradoxal. Um grau elevado de liberdade pública parece ser positivo para a liberdade de espírito [Verstand] de um povo, e, no entanto, coloca-lhe barreiras intransponíveis; um grau menor daquela liberdade leva, pelo contrário à criação de um espaço que permite a esse povo expandir-se até ao limite das suas possibilidades. Quando então a natureza tiver posto a descoberto, sob essa casca dura, a semente que mais cuidados lhe merece, ou seja a tendência e a vocação para o livre pensamento, nessa altura esta tendência actuará por sua vez sobre o modo de ser do povo (o que o tornará cada vez mais capaz de uma liberdade de acção), e finalmente também sobre os fundamentos dos governos, que tomarão consciência de como lhes convém tratar os indivíduos – que, afinal, são mais que máquinas – de forma consentânea com a sua dignidade.

Immanuel Kant, 1784, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? In: João Barrento, 1989. Literatura Alemã – Textos e Contextos (1700-1900), Vol. I O Século XVIII, selecção tradução, introdução e notas de João Barrento, Lisboa: Editorial Presença, pp. 63-66.

 

O posicionamento de Kant está já longe do modo como as sociedades contemporâneas se organizam e agem. Mas o posicionamento de Kant continua a ter actualidade na relação entre o indivíduo e o colectivo, sendo que este último se projecta em derradeira instância num Estado que tornado democrático ou também podendo ser totalitário é uma voz superior ao coro de vozes individualizadas que escolhemos ou que em nosso nome são escolhidas. E a sua superioridade é cada vez mais ditada pela tecnologia avançada que tudo vigia e anota sob o signo da transparência.

E se é verdade que os megadados e o dataísmo podem salvar vidas, como todos constatamos, agindo em nome da sobrevivência dos cidadãos, perguntamo-nos com Byung-Chul Han se queremos que o vírus nos isole e nos domine. (p. 8) A ele é deixado campo aberto para, como era comum nas pandemias da Idade Média, sermos ceifados à gadanhada e a cavalo por um esqueleto (o nosso e o outro), como aparece, por exemplo, nas gravuras e xilogravuras de Albrecht Dürer.

 

No seu texto dedicado à actual pandemia, Byung-Chul Han apela à transformação de mentalidades relacionada com a dominante sociedade da “transparência” e da “positividade”, aquela que segundo ele lidera os fenómenos sociais e cibernéticos que caracterizam muitos dos nossos comportamentos e acções, para o bem e para o mal, enquanto indivíduos e colectivo.

Importa definir estes conceitos com base no entendimento que deles faz o filósofo sul coreano. No caso da “transparência” ela corresponde ao comportamento da sociedade contemporânea como  um regime de controle que se arvora numa cultura exibicionista, de mostração esvaziada de valores e princípios e na qual não cabem fenómenos de ritualização. Tudo está à vista, tudo é exibido. E exactamente neste sentido, o indivíduo contemporâneo com este seu comportamento ajusta antes a sociedade da transparência a formas de pornografia que não existem para seduzir, serem construtivas ou contribuírem para a reflexão.

A sociedade “transparente” e “positiva”, porque domina o mundo da comunicação e da gestão da mesma, e porque nos influencia no modo como nos tornamos cansados por dependermos de um tal sistema, dificilmente nos ajuda a apreciar e a compreender a importância do que está associado à “potência negativa”, aquela que é pura e simplesmente contrariada em todos os seus efeitos e jogos implícitos próprios do “não fazer”. “Se possuíssemos apenas a potência positiva do ser capaz de percepcionar e não possuíssemos a potência negativa do não perceber, a percepção ficaria indefesamente entregue a todos os impulsos e estímulos que nos invadem e sufocam. A “espiritualidade” nunca seria possível. Se possuíssemos apenas a potência do fazer e não a potência do não fazer, o mundo ficaria entregue a uma hiperatividade fatídica. Se tivessemos apenas a potência de pensar, o pensamento estaria disperso por uma série interminável de objectos. A reflexão (Nachdenken) seria impossível, pois a potência positiva – o excesso de positividade – só admite a continuidade do pensamento (Fortdenken).

In: Byung-Chul Han, (2010), 2014. A Sociedade do Cansaço. Tradução de Gilda Lopes Encarnação, Antropos, Lisboa: Relógio D’Água, p. 43.

 

Talvez Immanuel Kant tivesse gostado de ter tido por perto Byung-Chul Han e de com ele conversar sobre como continua a ser necessário criarmos as condições e os pressupostos que nos possam conduzir ao uso da liberdade responsável.

 

Aulas previstas em Março – 5

Aulas dadas em Março – 5

Saídas culturais - 2