As Rotas da Escravatura de Jordi Savall e as nossas emoções

3 Maio 2021, 10:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

 

MAIO                                    2ª FEIRA                                13ª AULA

 

 

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Conseguimos finalmente ter acesso ao DVD do espectáculo dirigido por Jordi Savall, em 2015, com apresentações posteriores em cidades do continente europeu.

A constituição deste projecto com músicos e cantores de três continentes (Europa, África e América do Sul) limitou a sua divulgação a outros territórios. Tirámos, por isso, benefício do objecto electrónico que acompanhámos na íntegra (2h 9’ 30”) e sem interrupções.

 

Intuo que foi proveitosa a nossa aula, mesmo que conduzida pelo silêncio após conclusão do visionamento.

Quem diria que canções e composições musicais vindas do séc. XV e até ao século XX – as narrativas introdutórias de cada uma das partes incluem, por exemplo, discurso de Martin Luther King – continuam actualizadas? À nossa volta, mas também em paragens mais distantes, racismo, violência, formas de moderna escravatura, subjugação do ser humano pelo ser humano invadem as nossas casas através dos média. Invadem-nos em tempo real.

Recordo em versão livre um trecho de livro de Giovanni Frazzetto, Como sentimos – O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, em que o autor nos confronta com duas situações distintas. Numa primeira exemplificação, alguém se depara repentinamente com uma criança em afogamento. Numa segunda hipótese, alguém recebe pelo correio informação de que pode apoiar crianças em África, enviando um pequeno montante como ajuda. O texto original é bastante mais corrosivo e irónico do que aquilo que retirei como informação central, mas o que nos interessa e que podemos relacionar com o assunto alargado do nosso DVD diz respeito a uma atitude moral que se torna distinta conforme o acontecimento esteja próximo de nós (a criança a afogar-se) ou esteja a quilómetros de distância (a carta que chega de África). (Frazzetto, 2014: 71-74)

Na qualidade de europeus não nos podemos alhear de um sentimento de culpa colectiva que perpassa a obra de Savall e dos seus colaboradores. Mas para além desse vector central, existe a distância de não termos vivido essa realidade histórica. O mesmo se pode dizer daqueles que sendo oriundos de África ou da América do Sul integram hoje nas suas culturas e vivências um sentimento de perda profunda. O que acontece para além destas constatações é que o fenómeno não morreu por si. A escravatura moderna é uma realidade que podemos observar como observada foi e salva a criança em afogamento (experiência de proximidade), embora a nossa mais frequente atitude seja a de olhar para o lado como se se tratasse da carta que chegou de África.

Concluo dizendo que a distância física em relação ao que neste campo vai acontecendo pelo mundo e que recebemos pela mediação de imagens, relatos e textos, obras de arte, deixa de operar verdadeiramente entre proximidade e lonjura tout court. Aquilo que nos intercepta são as emoções pelas quais somos afectados e que são despertadas por cada situação, real ou diferida, e que nos conduzem directamente ao juízo moral.

O prazer no visionamento do espectáculo de Savall não inviabiliza a consciência de que ele foi construído sobre território profundamente minado. Emocionámo-nos e o sentimento de emoção com que acompanhámos As Rotas da Escravatura não pôs em causa os nossos valores. Talvez os tenha até fortalecido. A nossa conduta, para além do espectáculo que vimos em conjunto, informa o nosso quotidiano interceptado também pelas disfuncionalidades praticadas à nossa volta ou em distantes lugares e que nos são servidas em directo ou por intermediação.

Considera Frazzetto o seguinte: «Era mais provável que os nossos antepassados biológicos se vissem na situação de ter de salvar alguém que se encontrasse em perigo pondo-se a si próprios em risco. Os nossos cérebros, e em particular os circuitos do nosso cérebro que medem a emoção, foram treinados ao longo de milhares de anos para responderem a situações morais desse tipo.» (Frazzetto, 2014: 73)

Como poderemos nós impedir a escravização? Esta é uma falsa pergunta, pois nem a arte de Savall nem a sua bondade extrema têm, tiveram a capacidade para mudar os negócios do mundo. É disso que se trata afinal. A subjugação do outro é alvo de muitos matizes, mas o mais evidente prende-se com níveis subliminares de sobrevivência.

 

Livro citado

FRAZZETTO, Giovanni 2014, Como sentimos O que a Neurociência nos pode – ou não – dizer sobre as nossas emoções, Lisboa: Bertrand Editora.

 

DVD visionado

SAVALL, Jordi 2015, The Routes of Slavery (1444-1888), K. M. Diabaté, I. García, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, LA CAPELLA REAL DE CATALUNYA, HESPÈRION XXI, 3MA, TAMBEMBE ENSAMBLE CONTINUO.