da voz ao canto
8 Março 2021, 10:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
MARÇO 2ª FEIRA 6ª AULA
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Iniciámos o nosso seminário escutando Maria-Josefina Fuentes sobre as duas performances – Crisálida e El pasado adelante – que nos apresentou na semana passada em pequenos vídeos. Pedimos para rever as duas produções para recuperarmos o que nos poderia interessar como contra-diálogo.
Maria João Vicente interpretou em Crisálida as folhas rasgadas do caderno e cosidas umas às outras como uma mortalha sobre a performer, explorando a ideia de “cura pela arte”: “dói-me/cura-me”. Josefina defendeu a sua produção através do elemento voz – a área da sua investigação doutoral – como a única possibilidade de a integrar como processo de sublimação, chamando a atenção para o facto de que a gravação revelava a disfonia das vozes justamente durante o momento em que se procede à cosedura.
Rocio Perez salientou uma expressão de Josefina que afirma: «Esta não é a minha voz” como sendo um aspecto a relevar no contexto de toda a performance, criando um ambiente emotivo e comovedor como se a voz se comentasse a si própria. Para Josefina, a voz é trabalhada como «ressonância interior».
Por sua vez, Patrícia Anthony salienta na segunda performance, El pasado adelante, a questão que tem representatividade na fraqueza humana, a propósito do que lhe é dado observar do desempenho da colega, enunciando como objecto artístico a ideia de crise que acompanha o estado psico-físico da performer, e salienta como contraponto a beleza dos sons naturais que pudémos escutar.
Reportando-se a Crisálida, Josefina explica e sublinha que a utilização de uma canção como uma única melodia contínua tem a função de tentar reconstruir um corpo, talvez uma vida em certa fase. É através do desempenho vocal, defende a aluna, que o corpo se recompõe e reconstrói, daí a tónica sobre a voz em relação a outros elementos constitutivos da performance. Em contrapartida El pasado adelante não usa uma canção como unidade vocal, mas sons sob a forma de display. A criação de distinta atmosfera produz efeito mais discrepante quando comparado com a primeira performance.
Eliane Ramin revela ter-se sentido muito tocada pelas apresentações da colega e sublinha a necessidade de um rompimento com um tempo anterior para que haja uma redescoberta num tempo seguinte. Acentua ainda Eliane que não parece fácil este processo no âmbito de uns poucos minutos de trabalho artístico.
Paúl Sanmartin segue uma outra estratégia de abordagem destes dois objectos artísticos, estabelecendo entre eles comparação. Apesar de ter sido proposto que nos ocupássemos de cada performance por si, é compreensível que sejamos tentados a olhar/ouvir ambas como um conjunto entre si comparável. Foi isso que foi acontecendo e que se tornou mais evidente no caso da intervenção de Paúl. Na sua perspectiva, o som revelado em cada momento específico corresponde a um estado corporal próprio, a uma coreografia emocional que se desdobra em voz, canto, som, criando um desdobramento entre pessoa que investiga e pessoa que se escuta e se mostra. Chegados à compreensão deste processo podemos inferir que a multiplicidade das sucessivas etapas das performances permite ao espectador/auditor aproximar-se de distintos níveis de um mesmo objecto artístico e, neste caso, das duas performances.
Josefina Fuentes interroga-se sobre quantos corpos tem uma voz. Maria João Vicente destaca da sua visualização que em Crisálida a boca da performer está pintada de vermelho. Em El pasado adelante a boca está oculta conduzindo a uma escuta biológica e simbólica de todo um corpo sem rosto..
Ainda em jeito de conclusão Patrícia refere o recurso a várias posições de Yoga na última performance. Eliane recorda a compreensão do corpo como ressoador.
Rocio Perez relembra a presença e a importância de uma canção, na primeira performance, e também na segunda performance, a abertura do espaço e a captação dos lugares associados à respiração do corpo e seu ressoar. A aluna capta ainda diferentes níveis de construção de um lugar de afectos na escuta dos sons oceânicos integrados na segunda performance.
Verificamos na apresentação destas duas performances que existe uma opção por dois distintos espaços para a função. Em Crisálida a performer opta por uma sala de aula descarnada, onde a projecção de voz é condicionada pelas condições acústicas desse espaço. Espaço fechado como projecção para o seu corpo e para o seu estado de espírito. Teríamos neste caso a representação da negatividade em presença.
Em El pasado adelante temos o espaço natural aberto onde ecoam os sons próprios desse lugar. O estado de espírito da performer não é menos cauteloso do que antes, mas revela um distinto posicionamento, naquilo que arrisca com o seu próprio corpo. Estar à beira de um precipício (confirmado por Josefina) determina que a nossa leitura possa incorporar uma fronteira entre a vida e a morte.
Essa ideia de transição era já aflorada na primeira performance, ainda que o título da mesma – Crisálida - configure um estádio de passagem entre o larvar e o tornar-se adulto para certos insectos. Não vemos nunca a borboleta que se deveria seguir à larva. A performer apresenta outras opções.
E essas opções situam-se na relação estabelecida com o espaço acústico de onde se escuta uma canção, de onde a voz é projectada como amplificação para o exterior, sabendo nós que aquele exterior é um interior opressivo. Mas é o espaço acústico interno que conduz o desenrolar de todas as acções.
Dessas acções destaco o coser dos papéis, uma imagem potente, que tem por função religar as memórias escritas no diário de bordo, na perspectiva de que elas possam conhecer novo destino. Cobre-se a performer de papel como se fosse um pano montado nos seus pedaços. O seu corpo parece silenciado num tempo de espera/talvez esperança, mas visivelmente amortalhado. A ideia de vida e morte deixa em aberto um futuro e esse futuro está na canção interpretada. Ao fazer confluir espaço acústico exterior com espaço acústico interior, verificamos que dessa tensão pode nascer qualquer coisa inesperada que o cosimento das folhas enuncia.
Quanto à segunda performance - El pasado adelante – também o título é providencial e é nele que uma primeira leitura óbvia do risco de morte é superada. Ir para lá do passado significa dar-se uma chance de recomeço.
E mais uma vez esse recomeço é sublinhado pela voz. Não há letra, não há melodia uniforme. Há sons brutalmente expressos de um corpo que caminha a quatro patas sobre uma ravina. Um corpo filmado sem rosto, como se a voz fosse essse rosto, esse testemunho identitário que agrega em si todos os passos dados, algo que não se apalpa, não se cheira, nem se mede à vista, algo que revê o próprio título da performance e recupera o corpo para o futuro.
A ideia de futuro plasma-se no corpo sentado sobre um rochedo, de costas para o observador, tornando-o cúmplice no mesmo olhar que se abre sobre oceano e céu com sol. A luz não é futura. É já presente.
Talvez um dia Maria-Josefina Fuentes possa connosco exercitar como a voz nos ama e nos acompanha até ao nosso fim. A idade transforma-a, mas não lhe retira os traços que nos individuam.
Falámos finalmente de Lambarena que foi sendo escuta dos alunos ao longo de algumas semanas. Recordámos que a Händel se seguiu Bach como criador musical nas nossas propostas artísticas. Johann Sebastian Bach foi o compositor escolhido pelo médico e filantropo alemão Albert Schweitzer (1875-1965) para povoar de sonoridades estranhas o universo dos habitantes de Lambarena, a capital da província de Moyen-Ogooé no Gabão.
Ao contrário da nossa experiência canadiana, a audição do CD Lambarena não procurou repor nenhuma ordem anteriormente posta em causa.
A fundamentação do projecto africano nasce de um duplo amor de Schweitzer: Bach e os lambarenos aos quais dedicou toda uma vida, tratando-os de muitas doenças.
O nosso encontro com esta experiência resulta de homenagem artística musical ao médico alemão. Escutamos um passado feito presente no final da década de oitenta de uma perspectiva que valoriza o encontro de culturas -Europa e África – a contrapelo de uma História sangrenta e devastadora ao longo de séculos.
A ética da arte está aqui contida como excepção que justifica na beleza deste CD o que valoriza os seres humanos na sua gratidão e proximidade.