Um Messias de Händel pela reconciliação
1 Fevereiro 2021, 10:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
FEVEREIRO 2ª FEIRA 2ª AULA
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Tal como havíamos planeado, foi possível a todos ver o espectáculo Messiah/Complex da Companhia Against the Grain Theatre, sediada em Toronto no Canadá. A escolha deste Oratório de Händel mereceu o aplauso de todos dado ser uma partitura muito conhecida e amada pela sua extraordinária musicalidade em coros e solos, em particular, o 42º movimento – Aleluia – talvez o mais apreciado entre todos os movimentos. Também é verdade que para os cristãos o Messias de Händel tem conotações religiosas e espirituais de grande riqueza poética e musical ocupando-se da vida de Cristo desde o seu nascimento até à ressurreição. Mas o mais interessante desta obra musical de Händel é que ela ultrapassa de longe as específicas dimensões como e porque foi criada, alargando o seu âmbito ao mais sensível espectador e auditor, independentemente de questões de fé ou de erudição musical. Esta obra atravessa os séculos sempre viva e aberta a uma dimensão universal que a torna por isso também indatável.
Não sabemos o que levou a Companhia Against the Grain a optar pelo Messias de Händel para o seu espectáculo. Mas talvez possamos pensar no título que foi dado ao espectáculo: Messiah/Komplex. A complexidade da obra em si não terá criado aos músicos e cantores problemas extra atendendo ao facto de que todos eram profissionais. Se quisermos ler mais além da evidência, poderemos questionar-nos sobre o introito com que abre o filme-performance. Este espectáculo procura homenagear todos os povos que viveram e vivem no Canadá, todos sem excepção. Num gesto simbólico de pedir perdão àqueles que pereceram sob a bota do poder branco associado ao exercício de domínio colonialista passa a ser informação para todos nós.
O resgate desta proposta configura-se no uso das diversas línguas que perdidas ou agora recuperadas em modo simbólico são interpretadas pelos solistas. Na pedagogia do espectáculo este é um eixo dominante.
Pessoalmente interessara-me a ideia das diferentes línguas e tentaria descobrir como soaria o Messias em Inuktitut ou em Dene, partindo do princípio que a chegada a esse objectivo só poderia ser alcançada com legenda que anunciasse essa escolha. E aqui interroguei-me para quem afinal seria este espectáculo? Será que a maioria dos canadianos tem conhecimento destas línguas antigas? Que dizer dos cybernautas de outras partes do mundo que se inscreveram via internet para estarem presentes na função? O que prevalecerá? O Messias nos seus diferentes movimentos, a maravilhosa orquestra? O destaque dos solos masculino e femininos que levam de passeio o espectador pelas diferentes paisagens de um Canadá contemporâneo? Os coros recolhidos em igreja ou ao ar livre? Onde cabem aqui as línguas?
Nunca esquecerei um depoimento de um linguista, no filme de Werner Herzog, Encontros no fim do mundo (2007), um filme documental dedicado à Antárctida, em que o entrevistado, melancolicamente a cultivar tomates em estufa entre as neves quase eternas e um forte sentimento de perda, refere que todos os dias desaparecem do planeta cerca de meia dúzia de línguas.
Quem sabe se Messiah/Komplex pretende com a sua estratégia multilinguística de reparação inverter a tendência anunciada pelo linguista solitário do filme de Herzog. Tenho algum cepticismo em relação a essa hipótese. A obra da Companhia Against the Grain ficará em arquivo tecnologicamente preparado. A ela haverá acesso futuro. As línguas em regressão ou já extintas, as línguas minoritárias no Canadá como o árabe, todas aquelas em que os cantores cantam as suas próprias culturas, tradições e memórias continuarão a ter a dominância do francês e do inglês, que também são as suas línguas. Jamais saberemos como falavam e cantavam os Primeiros Povos daquela parte da América. Nunca saberemos o que sentiriam e pensariam se lhes pedissem que cantassem Händel e fizessem de Jesus Cristo o redentor das suas vidas.
Nesta odisseia de canto e música a que à má consciência de um país se sobrepõe o desejo de todos reunir sob uma perspectiva epifânica, é dada à arte a função de conduzir um processo político como forma de apaziguamento.
Foi este o espectáculo que discutimos, chegando à conclusão, e considerando vários pontos de vista, que o mais interessante em Messiah/Complex fora a possibilidade de argumentarmos a partir de um objecto que não reunia unanimidade.
Iniciámos a seguir a questionação de documentos escritos pelo aluno e pelas alunas acerca das suas futuras dissertações de doutoramento. O primeiro óbice surgiu com o tamanho desses documentos. Pedia-se 1 a 2 A4s. Verificou-se que em alguns casos o tamanho do documento precisaria de crescer. Ora o que nem sempre o objectivo do exercício, que era exactamente reduzir ao essencial o que se pretendia apresentar, deixou de suscitar queixas na sua concretização segundo este princípio. Difícil. Sim, mas tratava-se de um trabalho propedêutico através do qual se estruturava o pensamento essencial sobre o assunto
Interessante pareceu ser a vontade que a todos moveu de quererem apresentar com verdadeira alegria aquilo que os move. Este é o bom espírito que será incentivado.
O segundo óbice prendeu-se com a capacidade de síntese na formulação das perguntas, ainda que as questões lançadas pretendessem obter esclarecimento acerca de aspectos gerais do documento.
E os esclarecimentos foram dados por Eliane Ramin, a aluna cujo trabalho esteve em discussão e que se intitula: Corpo emotivo: a neurobiologia da emoção e o ator.
Destacou-se nas intervenções apresentadas a ideia de que o conceito de “corpo emotivo” estará a precisar de clarificação para com ele ser possível operar. A aluna em questão esclareceu-nos que a operacionalidade do conceito está em estudo e requer progressiva verificação. Este é um modo interessante investigativo e que não é muito comum. A criação e estruturação de uma ideia com a qual se parte para a pesquisa e que estando no centro do trabalho a realizar vai ganhando forma e sustentação.
A análise destes documentos disponibilizados pelo aluno e pelas alunas prosseguirá nas próximas aulas.