O prazer estético de As Rotas da Escravatura
27 Abril 2018, 16:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
ABRIL 6ª FEIRA 17ª Aula
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Retomámos hoje o visionamento da obra Rotas da Escravatura de Jordi Savall (2015) e dos seus músicos e cantores associados. Chegámos ao fim desse visionamento, provavelmente cheios de alegria, dançámos no lugar, tivemos entusiasmo pela qualidade artística dos intervenientes, pelas tradições que consigo transportavam e que iam das roupas vestidas, aos instrumentos utilizados, às letras das canções entoadas a solo e em conjunto, aos corpos dançantes que vinham de África (Marrocos, Mali, Madagáscar), mas também da América do Sul (Brasil, Argentina, Venezuela, Colômbia), associando-se aos músicos e cantores europeus (solistas da Capella Reial da Catalunha e do Hespèrion XXI, com eles formando um único agrupamento, que se deixou conduzir por Savall, mas também pela estrutura de montagem histórica com que um narrador-actor (Bakary Sangaré) criou as partes essenciais de guionagem para a construção do espectáculo. Na representação em Lisboa (Fundação Calouste Gulbenkian, 13 de Abril de 2017) esse papel foi desempenhado por Alberto Magassela, actor moçambicano radicado em Portugal.
Em ambos os casos a negritude interior dos actores contribuiu para produzir verosimilhança no desempenho. Ambos possuem um timbre de voz denso e profundo, pronto a envolver-nos e, ao mesmo tempo, tornando-se criador de aprendizagem crítica de uma História que não está de modo algum fechada.
Assinalados os factos e as suas disposições, acompanhámos o percurso dos protagonistas, a maior parte deles quase sem identidade ou identificados como objectos. Apercebemo-nos através de muitas das canções de como eram os seus estados corporais e de espírito e de como o canto, a música e a dança contribuíam para minorar o seu viver amargo. A grande maioria destas pessoas começava por pertencer à condição de escravo nos países de origem. Eram os negreiros, irmãos de sangue, que os vendiam e exportavam. Os brancos encarregavam-se do resto. Usados como mão-de-obra sem pagamento, esses homens, mulheres e crianças constituíam uma mais-valia incalculável para os países que os recebiam. Estas pessoas, para além de serem normalmente maltratadas e humilhadas, não tinham estatuto de gente.
O espectáculo é a história de um tempo (mais de quatro séculos) em que vários territórios enriqueceram e progrediram à custa da exploração do ser humano pelo ser humano.
Jordi Savall concebeu este espectáculo em nome de uma humanidade mais justa e equidistante. É nessa possibilidade que ele acredita há muitas décadas Na sua perspectiva a música pode ajudar a transformar a própria realidade. As suas experiências com refugiados em Calais associam-se ao mesmo campo de arte, acção e reflexão. O músico catalão não confunde música com acontecimento espectacular. Aas suas actuações e dos seus agrupamentos têm sempre uma dimensão espectacular, é verdade, mas que advém do tratamento de um assunto ou tema em que os sentimentos e as emoções adquirem visibilidade e autenticidade para o espectador. Os seus músicos não são estátuas, nem animais amestrados. Eles circulam no espaço cénico, estabelecem comunicação entre si, vestem-se a gosto próprio, têm um desempenho profissionalíssimo, dando disso conta a alegria com que trabalham.
Especificamente este espectáculo, que vimos em DVD, poderia ter criado em nós um certo sentimento de culpa, consciente ou inconsciente, por estarmos a ter prazer com obra que se ocupa de um dos grandes flagelos da Humanidade. Não temos de nos punir pelo que não fazemos, nem podemos alterar o que já foi. O que temos mesmo é de pensar que a escravatura, assinalada desde tempos imemoriais, continua a existir. Estarmos atentos a esta realidade não nos tem de impedir de celebrarmos a arte que é capaz de nos mostrar a vergonha humana de um modo humano e belíssimo.
Aconselho vivamente a leitura dos materiais escritos por historiadores competentes e disponibilizados sobre este assunto.
É pesado o nosso programa do ponto de vista das gigantescas malfeitorias que seres humanos praticam contra seres humanos. Todos nós somos alvo de pequenas malfeitorias quotidianas. Mas o sofrimento de escravos e refugiados, de gaseados é qualquer coisa que poderíamos considerar irrepresentável. E afinal não é. Uma arte comprometida tem, entre outras, essa missão.
Leitura recomendada:
SAVALL, Jordi 2015, The Routes of Slavery (1444-1888), K. M. Diabaté, I. García, M. J. Linhares, B. Sangaré, B. Sissoko, LA CAPELLA REAL DE CATALUNYA, HESPÈRION XXI, 3MA, TAMBEMBE ENSAMBLE CONTINUO, PP. 100-179.
DVD visionado:
DVD do espectáculo apresentado ao vivo, a 17 de Julho de 2015, na Abadia de Fontfroide, Narbonne, França, no âmbito do X Festival de «Música e História para um Diálogo Intercultural», Aliavox. Tempo de duração: 2h08’30’’
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