A vertigem permanente
18 Dezembro 2018, 16:00 • Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes
DEZEMBRO 3ª FEIRA 25ª Aula
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Reservámos para a aula de hoje uma revisitação da obra coreográfica de Josef Nadj Woyzeck ou o esboço da vertigem (1994) com o intuito de nos demorarmos sobre o absurdo visível da proposta estética em inspiração livre e a partir do fragmento dramático de Georg Büchner que Josef Nadj concebeu. Demorámo-nos na observação de personagens fundidas (Capitão e Doutor), verificámos que o tambor-mor se multiplica no desejo do corpo de Maria em outros que não conseguem esconder uma líbido mal resolvida, descobrimos que há personagens que quase surgem do nada e que dão corpo a uma espécie de sacrificialidade de um Cristo que talvez não o seja mas que pode representar essa dimensão de sujeição e humilhação que está colada a Woyzeck.
Idêntica leitura mas numa linha histórica associada ao absurdo que foi o nacional-socialismo e posteriormente fazendo convergir no mesmo sentido a Guerra dos Balcãs (recordo a este nível o filme de Emir Kusturica - Underground (1995), Nadj compõe uma coreografia esculpida na História da Europa, tal como Büchner sagazmente no seu tempo o fez.
A estética desta obra deriva de uma quase fusão dos bailarinos com o cenário, moldando-se ambos no encafuamento que o espaço proporciona. Abrem-se e fecham-se portas, alcançam-se alçapões à vista do espectador, operam-se transformações em objectos multifuncionais, passeia-se e usa-se uma faca à luz de malabarismos sucessivos. O contraste entre o branco e a soprada forma do figurino que representa o poder científico e militar rapidamente perde o seu alcance deixando de sinalizar apenas essa simbolização. A voracidade da estranheza que nos engole replica-se nas cores sombrias dos trajes dos outros bailarinos. Se ao princípio é relativamente compreensível o universo de classe e pertença de cada um na coreografia de Nadj, muito rapidamente nos apercebemos de que a vertigem progride e engole todos sem excepção tornando o jogo cénico dependente de apenas mais uma e última cartada para a morte. O comportamento animalesco, próximo da coprofagia revela o abandono a que aqueles seres são votados e de onde jamais sairão. O que poderia ser entendido como excepção torna-se regra, tão natural esta que só uma coreografia do absurdo como a de Nadj poderia fecundar. O quadro estético resolve aquilo que a ausência de ética não foi capaz e continua a não ser capaz de promover entre os homens: liberdade, igualdade e fraternidade.
Em cena, no final dos anos 90 do séc. XX, Nadj torna os corpos em matéria plástica e mete neles as suas mãos de artista escrevendo um pequeno manual sobre a condição humana. A sua estética do feio tem a subtileza da poesia na música composta por Aladar Racz, nos pequenos brilhos de um espelho que reflecte muitos rostos, na moldagem de um pequeno ser que nasce à nossa vista fazendo-se e desfazendo-se no aconchego de um abraço com o qual Maria percorre todo o corpo de Woyzeck.
Josef Nadj tal como Dimitris Papaioannou dança sempre com os seus bailarinos. Ambos concebem e experimentam o fora do lugar e o dentro do lugar. As nossas perguntas, as nossas dúvidas, os nossos nexos podem agora ter lugar.
Visionamento em aula
Woyzeck ou l’ébauche du vertige de Josef Nadj (1998)