Como estranhamos o que em nós se entranha?

27 Novembro 2018, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

                        3ª FEIRA                                          19ª Aula

 

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Trabalhámos o fragmento dramático Woyzeck de Georg Büchner a partir da versão cénica do Teatro de São João no Porto e para a encenação de Júlio Cardoso, com a convicção de que, apesar de existirem quatro versões diferentes da peça, algumas com ligeiras diferenças, e destas não terem sido ordenadas pelo próprio autor, mas por estudiosos da sua obra, o objecto de estudo causara estranheza nos alunos. E essa estranheza equacionava-se a vários níveis, como se o texto fugisse de debaixo dos pés. A realidade subjacente ao texto dramático ainda que mencionada e referenciada em aula no contexto da Alemanha das primeiras décadas do séc. XIX, escapava aos leitores na construção das cenas fragmentárias e dispersas, mas sobretudo na linguagem escolhida por Büchner para caracterização das suas personagens.

Ocupámo-nos como abertura de trabalho da verificação da ordenação da lista de personagens (87) para entendermos que gradação era criada entre elas e que critério teria sido eventualmente escolhido pelo autor para as agregar entre si, embora não pudéssemos ter a certeza de que esta ordenação teria sido a original.

Conscientes de que a multi-autoria nos iria acompanhar até ao fim deste estudo, verificámos que Woyzeck era o único que apresentava nome próprio e nome de família. Esse estatuto dava-lhe o reconhecimento da sua identidade completa que corroborava no reconhecimento do seu estatuto de protagonista.

As restantes personagens apareciam designadas pelo nome próprio (Maria, André, Margarida, Carlos, o Parvo, Catarina), na perspectiva de uma relação afectiva com a personagem central, ou recebiam como indicativo de existência as profissões desempenhadas (Capitão, Doutor, Tambor-Mor, Apresentador, Estalajadeiro, Primeiro-Artesão-Aprendiz, Segundo-Artesão-Aprendiz, Oficial de Diligências, Médico, Juíz). Acrescente-se ainda que a escala de ordenação das personagens considerava uma figura como a do Charlatão, que não é uma categoria profissional mas que se apresenta antes como uma designação de carácter. O mesmo se poderá dizer em relação à personagem do Judeu, que é aqui integrado não pela sua religiosidade mas pela sua acção social e anti-ética como alguém que procura sempre tirar benefício financeiro da actividade de negócio que pratica. Este estigma aposto ao judeu como característica ao longo dos séculos, sobretudo a partir da Idade Média era muito evidente na sociedade alemã do séc. XIX e viria a ter o trágico desfecho que o Nacional-Socialismo lhe entendeu apor durante o período da II Guerra Mundial. Na peça, o Judeu tem uma breve presença que é absolutamente essencial. É da sua loja que sai a faca com que Woyzeck irá assassinar Maria.

-Outras personagens como a Criança, Primeira e Segunda Pessoa, Velho, Avó, para além do leque geral constituído por soldados, estudantes, rapazes, raparigas e crianças são referência de um mundo familiar local que invoca uma harmonia de um tempo antigo no qual a relação intergeracional fazia sentido

 As nossas perplexidades fundamentaram-se ainda nas características apresentadas pela personagem Woyzeck, pelos seus comportamentos, pelas suas acções que nos colocaram perante uma dúvida metódica: Ele é culpado pelo assassinato de Maria? Ele é materialmente culpado pelo assassinato de Maria mas a sociedade não pode ser excluída desse acto? Ele é imputável se for levado a julgamento porque é um a pessoa que tem um comportamento estranho? Esse comportamento estranho provém de doença endémica (sofre de visões, possui uma agitação permanente) ou a sociedade potenciou esse comportamento, devendo por isso ser chamada a responder pelo que exige a Woyzeck? Não é Woyzeck tratado como um objecto? Será Woyzeck uma vítima do Pauperismo, teoria que expõe as diversas formas de pobreza que dominam não só ao longo do séc. XIX, e em particular na Alemanha e em França, mas que propõe através do pensamento de Marx, algumas soluções para uma camada da população que não tem pertença a nada nem a ninguém.~

Deste ponto de vista, Büchner foi alguém que manteve no seu tempo uma aguda expressão crítica em relação aos mais desfavorecidos. Ver a este propósito o texto do próprio autor disponibilizado no conjunto de materiais sobre Woyzeck e Büchner.

Procurámos ainda ir ao encontro de um conjunto de procedimentos linguísticos que agem sobre as personagens de forma específica.

Woyzeck, por exemplo, exprime-se de uma forma simples, cita a Bíblia, defende discurso filosófico em diálogo com o Doutor e o Capitão sobre a natureza das coisas e a natureza humana, manifesta através do discurso o seu estado visionário, sofre de obsessões. É nesta personagem que encontramos a maior diversidade linguística, Também desse ponto de vista, Woyzeck é o centro da peça.

 

Leituras recomendadas:

-BÜCHNER, Georg 1836, Woyzeck, tradução e prefácio de João Barrento, Porto: Teatro Nacional São João, Campo das Letras e Húmus, 2010.

BÜCHNER, Georg, 1834, O mensageiro de Hesse (primeira mensagem) e Cartas (1833-36) in: João Barrento (selecção, tradução e notas), Literatura Alemã – Textos e Contextos (1700-1900), vol. II, Lisboa: Editorial Presença, 1989, pp. 45-58.