De vertigem em vertigem

11 Dezembro 2018, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

DEZEMBRO                                                3ª FEIRA                                          23ª Aula

 

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Concluímos o visionamento de Woyzeck (1836) de Georg Büchner na versão de Janos Szasz (1993), logo nascendo as questões que invocavam a possibilidade de traçar cruzamento entre os vários objectos estéticos inspirados no fragmento dramático büchneriano.

Janos Szasz opta pelo preto e branco no seu filme e escolhe como cenário da acção uma estação de caminhos-de-ferro quase desactivada, ao lado de uma mina de carvão. O escuro e inquietante aspecto do lugar contrasta com a neve branca, com a fumarada das locomotivas, com as neblinas e os nevoeiros que nesse mesmo espaço criam espessura e contraste na criação estética de um ambiente inóspito, como se ali a vida estivesse também ela desactivada, conspurcada paradoxalmente pela falta de horizonte das pessoas. Esse horizonte de espaço aberto, como muitas vezes acontece na peça de Büchner, tem em Szasz uma componente de época, o período pós-industrial, que caracteriza ainda, em 1993, uma Hungria rural à procura de destino.

Essa amplitude do espaço adquire pontualmente voz. nas invectivações do Capitão a Woyzeck, feitas ao microfone e ampliadas por altifalantes que propagam no ar as ondas sonoras que ecoam entre grasnados de corvos. Terrífico é este ambiente que invoca a História da Europa sob o domínio do Nacional-Socialismo, e que tem na Hungria dessa época um dos mais musculados aliados. O gueto de Budapeste, que surge em Março de 1944, não sendo porém tão devastador em números como o gueto de Varsóvia, não deixa por isso de enviar milhares de judeus húngaros para campos de concentração como o de Auschwitz. Esta memória implacável e vergonhosa da História da Hungria é tratada por Janos Szasz como um acto cirúrgico no seu filme. Em plano e contra plano vemos alternadamente o rosto do Capitão em espaço fechado e o corpo de Woyzeck em espaço aberto. À voz do Capitão responde o corpo de Woyzeck com um gesto maquinal de continência. Este corpo-máquina repetirá vezes sem conta esta saudação, um tique que nele se entranhou, e que Büchner explora através de verbalização, deslocado de contexto. Ali, quase diria, habitam mortos-vivos. Os corpos e os andrajos arrastam-se em ritmo lento. As danças e os cantares populares, que em Büchner faziam falar a autenticidade do povo, ensombram e sublinham o lugar de nenhures. É nesse espaço de ruína física e mental, que a todos abrange, onde as casas são barracões de morada para o desencanto, o cio, a desordem, que se produz todo um desalinhamento humano que contrasta metaforicamente com a imagem dos carris das vias férreas. Chega-se e parte-se, carrega-se matéria-prima. Dobram-se os corpos, estendem-se mãos por migalhas, está sempre pronto para acontecer um crime. Assassinar é uma libertação.

O guião do filme percorre de forma quase errática o manuscrito de Büchner como se pretendesse aglutinar na história do protagonista desgraças e dificuldades da espécie humana num acto de absurda sobrevivência. A loucura de Woyzeck espelha-se na loucura das outras personagens, no sem-sentido de uma sobrevivência anómala.

Ao cenário natural acima descrito apõem–se reflexos de um antiquíssimo viver comum em canções e danças que eram expressão de alegria.

 

Filme visionado:

Woyzeck do realizador húngaro Janos Szasz (1993).

 

Aconselhou-se o visionamento em casa da coreografia Woyzeck ou l’ébauche du vertige de Josef Nadj (1998) como entrada para o trabalho da nossa convidada Ângela Orbay que dedicará a sua aula a Têxteis e Performance na exemplificação da obra do coreógrafo sérvio.

 

https://www.numeridanse.tv/en/dance-videotheque/woyzeck-ou-lebauche-du-vertige