Entre gatos, formas e cores - Kandinsky e as suas experiências teatrais

4 Outubro 2018, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

OUTUBRO                                       5ª FEIRA                                          5ª Aula

 

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1. Obra plástica, poética e cénica de Wassily Kandinsky

 

Dedicámos a aula de hoje à leitura e comentário de duas das Composições para Palco de Wassily Kandinsky.

A primeira intitulada Noite, escrita entre 1906 e 1907, poderia ser designada também de comédia de gatos. (Boissel, 1998: 21) O pequeno texto, deixado inacabado, terá sido uma primeira tentativa de Kandinsky experimentar o género teatral.

A escrita desta Composição para Palco, única em toda a sua produção futura, está associada a uma fase da vida do artista muito conturbada do ponto de vista sentimental e, talvez por isso, ele tenha optado por transpor para animais, neste caso gatos, aquilo que se adequa na perfeição à linguagem humana.

É exactamente num contexto não fabular, sem finalidade didáctica, que Noite é escrita. A intencionalidade textual provém de outras referências, nomeadamente de um conflito interior em Kandinsky derivado de uma relação triangular pela qual sente enorme culpa.

Ao contrário do que se poderia esperar de alguém que sofre de sucessivas depressões causadas pela sua incapacidade de assumir perante Anna Semjakina, sua legítima esposa, a forte paixão que o liga a Gabriele Münter, sua ex-aluna e como ele também artista, Kandinsky revela em Noite uma aptidão inesperada por uma escrita divertida, cheio de humor e com qualidade cénica comprovada.

O diálogo entre gatos (mãe e filho) cria um equilibrado protagonismo entre ambos, estabelecendo entre Minette e Wasska uma relação de total cumplicidade e afecto, na qual ainda podemos perceber a crítica pontual ao comportamento dos humanos. A duplicidade da linguagem dos dois interlocutores, designados por M. e W., numa acepção mais universalista, apesar da referência didascálica de abertura, permite ao leitor/espectador o reconhecimento de dois mundos em interacção. Refugiado neste modelo, cujo funcionamento está há muito legitimado, Kandinsky elabora uma Composição para Palco que não parte da sua experiência e teorização pictóricas, mas com a qual deseja apaziguar o seu mundo fantasmático. Recorrendo a vivências directas e emocionais protagonizadas pelo seu gato Wasska, compõe um discurso quotidiano baseado na observação e secundado pela imaginação. A versão inacabada deste texto é em si um desafio para quem o deseje interpretar ou encenar. Em primeiro lugar porque o diálogo entre Minette e Wasska mantém uma linha de coerência compreensível a quem dele se abeire. Em segundo lugar porque o tom e as variações de ritmo em que ambos falam é ao mesmo tempo ingénuo e sábio, e, finalmente, porque não haver fim à vista pode explicar o estado conturbado do autor, pode apenas querer referenciar um curto episódio da vida entre gatos (a relação osmótica entre mãe e filho e pouco mais), pode de forma leve assinalar o que podemos aprender com os animais. Para tal o que ficou escrito basta.

Acresce dizer que são de Gabriele Münter uma gravura em linóleo e uma gravura em papel japonês que retratam o gato Wasska entre 1906 e 1907.

 

Apoteose (1914) foi a segunda Composição para Palco que lemos e comentámos em aula. Este texto cénico, também ele pouco extenso, integra diversas versões da Composição para Palco Violeta (1914-1926) e foi planeada por Kandinsky como epílogo para a composição principal, embora possa ser estudada como texto autónomo.

Procurámos salientar a sua qualidade plástica que a aproxima do trabalho pictórico de Kandinsky e naturalmente tomámos consciência da expressão abstracta da organização do espaço.

A designação de Apoteose permite-nos imaginar este texto de natureza quase totalmente descritiva como um contraponto explosivo (cor, forma e movimento implicam-se e interceptam-se) à actividade pictórica do artista, em que a materialidade e «as formas puras abstractas» se encontram.

O jogo de cores (azul, amarelo, verde, vermelho e branco) articulado nas suas diversas formas adquire uma dimensão personificada (corre, estende-se, não consegue aproximar-se, aproxima-se, volta para trás, rola quase horrorizada, têm de fugir de novo, etc.) que transforma toda a composição num circuito ininterrupto de uma espécie de seres que se auto-gerem em cena. O aparecimento da mancha de cor violeta protagonizando uma forma numérica (8) abre um novo espaço de acção que terá o seu auge com a explosão e o desaparecimento de cores e formas e subsequente transformação.

Em que medida podemos reagir à «Natureza Interior» de tudo o que imaginamos ver? De onde provém neste caso a elaboração lenta que Kandinsky atribui às suas composições?

 

Dedicaremos parte da próxima aula aos dois textos teóricos de Kandinsky escritos a pensar nas Composições para palco: Sobre composição para palco (1912) e Sobre a síntese abstracta para palco (1923).

Analisaremos o poema Ver.

 

Referência bibliográfica citada:

Jessica Boissel 1998. Wassily Kandinsky Über das Theater Du Théâtre O Teatpe, Paris, Köln: DuMont.

 

Leituras recomendadas:

KANDINSKY, Wassily 1991, Do Espiritual na Arte, Prefácio e nota bibliográfica de António Rodrigues, Tradução de Maria Helena de Freitas, Lisboa: Publicações Dom Quixote.

KANDINSKY, Wassily 1998, Sobre a Questão da Forma, Da Compreensão da Arte, A Pintura como Arte Pura, Conferência de Colónia in: Gramática da Criação, Lisboa: Edições 70. Apenas o primeiro ensaio é fundamental. Os restantes serão escolha de leitura dos alunos.