Marie Chouinard e o colocar-se diante das coisas

23 Outubro 2018, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

OUTUBRO                                      3ª FEIRA                                          10ª Aula

 

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2. A Sagração da Primavera (1910-1911) de Igor Stravinsky – Quadros da Rússia pagã em duas partes

 

Procedemos ao visionamento do último espectáculo seleccionado da série dedicada a A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky na coreografia de Marie Chouinard (1993).

Operámos a partir do conhecimento de anteriores coreografias (Nijinsky, Waltz, Bausch) na criação de correspondências que à primeira vista nos pudessem ajudar na organização de pensamento emocional face ao novo espectáculo. Verificámos, porém, que a opção da coreógrafa canadiana nos criara desamparo e talvez suspensão. Não só não havia planos de correspondência com as anteriores coreografias, como esta concepção propunha uma radicalização do corpo dançante apoiada em movimentos angulosos, bruscos, elásticos e de consecutiva repetição. O que observávamos tornava explícito que o horizonte de partida para o desenho coreográfico assentava na expressão de um tribalismo primitivo de cujos desenvolvimentos dependia o entendimento do trabalho corporal dos bailarinos. Em cada um replicava-se o seu corpo no corpo de outros, como se a ideia de identidade fosse temporariamente abolida da presença cénica.

A recriação de A Sagração da Primavera em Chouinard adquiriu a percepção de um tempo de regresso a uma temporalidade desconhecida. As figuras em palco respondiam por sonoridades e respirações talvez preparatórias de uma celebração ritualística que iria acontecer em dois registos. O primeiro deles criava autonomia da partitura de Stravinsky e durava 13’15. Esse era aquele em que o universo mais primordial do renascimento da Natureza ganhava coincidência com a ancestralidade da cultura russa, talvez até com outras culturas de distintas regiões do globo – um processo de afirmação tribal em plenitude e pujança. Nos restantes 33’85 de duração da coreografia, correspondentes ao tempo real da partitura, Stravinsky aparecia musicalmente reforçado por esse prólogo que anuncia e completa a dominância do sagrado protagonizado pela dança.

Chouinard capta e complementa bem a atmosfera de presença perante o desconhecido, ao mesmo tempo que desenvolve com os bailarinos um sentido de descoberta de um espaço povoado e montado com objectos oblongos e encurvados que preenchem o chão de cena como farpas a não tocar. Esse dispositivo estabelece um percurso exigente de leitura e equilíbrio que requer um grau de atenção extraordinário mas que os bailarinos incorporam bem entre as várias acções em desempenho. Pelo menos foi o que o DVD nos deu a ver. Interessante teria sido acompanhar ensaios para que apurássemos das dificuldades em corresponder a múltiplas solicitações ao mesmo tempo.

Enquanto dispositivo cénico esse conjunto de objectos é sujeito a várias mutações e expansões recriando-se nos corpos segundo diversas formas. Certamente um dos momentos esteticamente mais relevantes da coreografia e que deste ponto de vista faz apelo à imaginação do observador. Num gesto de recuperação da ciclicidade do processo, também o da própria Natureza, os objectos mencionados transformam-se no final do espectáculo em desenho de luz plasmado no chão e adquirem forma plana onde antes estivera a tridimensionalidade.

O destaque de luz faz-se ainda, agora sobre os corpos dos bailarinos, em recortes azuis alternados com vermelhos conforme as tensões do processo se tornam ou não mais visíveis.

A opção de criar também círculos de luz dentro dos quais se exibem os corpos em moção parece ser também uma proveitosa solução que cria um espaço próprio no desempenho de cada um, mas igualmente em duos, como forma de sublinhado face à uniformização corporal da opção coreográfica.

A propósito de uniformização dos corpos é a seu favor o facto de todos os bailarinos em cena usarem apenas uma cueca preta elástica, quer se trate de homens ou mulheres. Esta opção reconfigura visualmente o corpo da mulher ao corpo do homem diluindo suas diferenças. O mesmo se pode verificar no que diz respeito à caracterização do rosto, idêntica para todos. O preto e o vermelho desenham-se sobre a faixa ocular como marca de tribo, sinal de união entre seres que confraternizam e conflituam entre si. O ritual da virgem a sacrificar até à morte através da dança, de que fala a lenda russa, deixa de ter protagonista para corresponder a uma expansividade da ideia a distribuir por todos. Considerando ser esta possibilidade viável ela não anula a presença e acção de alguns bailarinos cujo desempenho parece obter realce. Não assistimos ao espectáculo ao vivo e por isso esta questão terá de ficar em aberto. Intuitivamente pressentimos que o sacrifício assume uma forma colectiva. E nessa ideia de conjunto se pode também integrar a opção de Chouinard em transformar os seus bailarinos em guerreiros que parecem acreditar em suas imparáveis forças físicas, que se furtam a armadilhas, embora não escondam nos rostos a perplexidade do mundo. Deste ponto de vista talvez possamos afirmar que esta Sagração da Primavera responde a muito do que faz parte da nossa percepção da contemporaneidade: o uniforme, o repetitivo, o ameaçador, o violento, o perigo iminente, o isolamento no seio do colectivo.

A inicial colaboração entre Stravinsky e o seu amigo Nicholas Roerich, responsável pela composição do cenário e dos figurinos para a versão original de A Sagração da Primavera procurou fundamentar-se no paganismo russo primordial e nos costumes de uma cultura quase perdida. Chouinard não desaproveita essa inspiração, procurando antes actualizá-la e reformulá-la na experiência viva da dança em que a intimidade, o próximo e a capacidade de dizer sim ou não sem medo, a revelação de nós em cada coisa, a escuta do antigo e longínquo como forma de incorporação do sensível em nós nos faz olhar de frente para uma coreografia de vigor sem mediação.

As nossas perguntas, as nossas dúvidas, os nossos nexos

 

DVD

Marie Chouinard, Le Sacre du printemps / The rite of Spring, Compagnie Marie Chouinard, 2013, 50 min.