O específico e o universal - "Sagração da Primavera" de Stravinsky a Pina Bausch

18 Outubro 2018, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

OUTUBRO                                      5ª FEIRA                                          9ª Aula

 

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2. A Sagração da Primavera (1910-1911) de Igor Stravinsky – Quadros da Rússia pagã em duas partes

 

Recuperámos o propósito comparatista, que antes anunciáramos, de estabelecer relações de vizinhança de construção em dança mas também de autonomia artística que fossem inspiradoras da nossa observação e audição de uma única partitura, a de Igor Stravinsky, para a Sagração da Primavera, adequada a diferentes desenhos coreográficos produzidos ao longo de um século.

O objecto musical não foi nem será alvo do mesmo tratamento específico que temos vindo a propor para as coreografias, sua representação no espaço, figurinos em uso, cenografia e desenhos de luz tão variados, por razões que se prendem com a nossa inabilidade científica para o fazermos. Percepcionamos auditivamente a partitura, executada por diferentes músicos e dirigida por diferentes maestros, com a leveza de espírito de a podermos reconhecer, sempre que é executada. Captamos já com alguma capacidade auditiva a diferenciação instrumental em solos e conjuntos, somos sensíveis ao dramatismo da execução musical em certos momentos da evolução de cada espectáculo. Este avanço só será possível se continuarmos atentos à partitura de Stravinsky. E mesmo assim o nosso pronunciamento sobre a qualidade da execução instrumental precisaria de muitas repetições e de uma linguagem técnica adequada.

No entanto, o modelo de trabalho para a interpretação das várias coreografias poderia ser o mesmo no campo musical. O que nos dá então a possibilidade de observarmos as coreografias seleccionadas e de sobre elas podermos ter pronunciamento?

Aquilo que poderá constituir uma plausível resposta diz respeito à nossa familiaridade com o que acontece no espaço cénico. Mesmo sem o discurso falado, somos capazes de identificar estados de espírito, movimentos e suspensões dos mesmos, respirações que os bailarinos nos transmitem, vestes que adquirem particular significado, efeitos de luz que chamam a nossa atenção, comportamentos do corpo como interpretação-reacção, ampliação ou decréscimo da execução musical.

Também somos capazes de identificar a marca autoral em cada coreografia, mesmo que esta se produza em função de anteriores representações. Lemos o que vemos (DVD, como é óbvio, não nos dá escolha de olhar), atribuindo a cada segmento coreográfico a nossa marca observativa. Tratando-se do corpo visível e dos seus enquadramentos, essa prerrogativa atribui-nos só por si uma capacidade natural: ver. As gradações que se lhe seguem (o demorar do olhar, as fugas para a invisibilidade de cada um, o desejo de abranger todo um conjunto, as suspensões de visionamento que não controlamos) associam-se neste modelo comparativo a um fenómeno pouco usual ainda hoje: não há história específica. A matéria que propicia o conteúdo adquire uma forma colectiva como ritual de renovação da Natureza, sexualidade e morte.

Por razões de calendário retirámos do conjunto das coreografias aquela que era assinada por um coreógrafo: Uwe Scholz. Tivemos como ponto de partida a coreografia de Vaslav Nijinsky, talvez a que melhor interpreta a cultura russa ancestral na indumentária e caracterização mas igualmente no desenho coreográfico inspirado em jogos corporais. E curiosamente foram estes jogos corporais (a sua angulosidade, os gestos cortados, os fabulosos saltos) que surpreenderam pela negativa os espectadores de 1913.

As coreografias de Sasha Waltz (2013), Pina Bausch (1975) e de Marie Chouinard (1993) adquirem neste contexto sentido mais universal, sem qualquer dimensão folclórica como se anunciava em Nijinsky. Será porque são mulheres a coreografar a impotência de uma jovem perante o sacrifício? Como se pode medir esse sacrifício? O que representa ele perante toda uma comunidade?

 

DVD

Le sacre du Printemps, Igor Stravinsky, Choréographie de Pina Bausch, L’ Arche, 2012, 36:25 min.