O salto no abismo

29 Novembro 2018, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

NOVEMBRO                                   5ª FEIRA                                          20ª Aula

 

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Woyzeck (1836) de Georg Büchner na versão cinematográfica de 1979 de Werner Herzog.

 

Optei por mostrar aos alunos o filme de Herzog como possibilidade de recuperarmos, a partir da memória construtiva do cineasta alemão, a época da peça. Entendi que o desempenho de Klaus Kinski e de Eva Mattes poderiam de algum modo contribuir para um afeiçoamento dos alunos à espessa matéria de que nos temos vindo a ocupar. Verifiquei, porém, que as opções cinematográficas dos alunos não se reviam neste objecto artístico. Porque sim. Porque não.

 

Disponibilizo agora um texto do meu doutorando em cinema, Pedro Florêncio, com o qual trabalho regularmente, não na especificidade da sua área de eleição mas sobre a intensidade das coisas da vida.

Título: Exterioridade e interioridade do abismal no cinema de Herzog – Para Georg Büchner e Klaus Kinski

Herdeiro de uma estética de viagens germânica que culminou nos poemas de Goethe, nas pinturas de Caspar David Friedrich ou nos estudos de Alexander Von Humboldt, o cinema de Werner Herzog tem-se afirmado num eixo em que coincidem as mais ousadas aventuras etnográficas e as mais radicais experiências sensoriais. O seu cinema dá-nos lugares que desabrocham em novidade, numa aliança entre a geografia de novos mundos e a estética do movimento cinemático. Bem a propósito, e porque falamos de movimento, o grande motivo da sua filmografia é um humano (demasiado humano) salto no abismo: das imagens em slowmotion de saltos de Ski em The Great Ecstasy of Woodcraver Steiner (1974) ao salto inesperado de Nicholas Cage para um piso inundado numa prisão em Bad Lieutenent (2009), o fascínio do realizador pelo abismo da alma humana marcou o compasso temático de obras-primas como Aguirre (1972), Fitzcarraldo (1992), Cobra Verde (1987) ou Nosferatu (1979). Em Into the abyss (2011), nas palavras do próprio Herzog, cristaliza-se numa só expressão o motivo de tantas das suas obras e projectos que se poderiam intitular da mesma forma. Woyzeck (1979) talvez seja, nesse sentido, a melhor metáfora de uma obsessão ou a melhor sinédoque de uma monografia, pois é a melhor e mais inusitada das ‘partes’ para se começar a ter uma conversa sobre um ‘todo’ herzoguiano que ocupará, sempre em diálogo com outros objectos, o nosso semestre em Espectáculo e Cognição.

Também herzoguiano é Woyzeck, o homem dos fragmentos de Büchner: criminoso e culpado, o soldado enlouquecido foi também a vítima perfeita dos novos modos de organização da modernidade ocidental. Uma ímpar consciência de classe, criatividade cognitiva e expressividade atrofiada não lhe permitiram experienciar um mundo comum em desenvolvimento. Em Woyzeck, o conceito de persona é tão múltiplo, plural e heterogéneo como a composição diversificada de que é feita a matéria aparentemente simples do filme de Herzog, tão à semelhança da aparente simplicidade dos fragmentos inacabados que Büchner nos deixou.

O filme Herzog cumpre a primeira ‘tarefa’ de qualquer destemida adaptação cinematográfica: sensorializa os escritos originais, dando-lhes cor e movimento. De forma respeitosa e académica, não elabora ou interpreta as suas ideias, antes estiliza o conceito. Estruturalmente, respeita a importância do fragmento. Talvez no respeito tenha sido fundada e fundida a aliança tripartida deste filme. O Woyzeck de Herzog é também o de Büchner, o dramaturgo, e o de Klaus Kinski, o actor. Woyzeck, o filme, não é uma mera mediação dos fragmentos inacabados de Büchner ou um mero palco performático para o corpo de Kinsky, mas antes uma forma de intensificação de certas ideias e formas sensíveis que, à semelhança de qualquer fragmento com força em potência, se pautam pela sua abertura e incompletude poética. A experiência estética de Woyzeck é tripartida, imperfeita e plural: kinskiana, herzogiana e büchneriana – eis a grande capacidade do cinema enquanto forma de intermediação, e não de mera mediação.

Ainda que condicionado criativamente devido a contingências de produção (rodado em apenas quatro dias e com pouca película e orçamento de sobra de Nosferatu), Woyzeck, o filme, apresenta-nos indícios de um subtil e interessante exercício de estilo. Duas cenas merecem a nossa particular consideração: a transfiguração da loucura que, durante a cena do assassinato de Maria, culmina num gesto operático que é caro à visão trágica que Herzog tece recorrentemente sobre um mundo à beira do futuro; e, cenas antes, quando Woyzeck enumera e lê frases em documentos retirados de um baú que o definem socialmente e em relatividade, momento cinemático esse em que Herzog apaga um diálogo autoexplicativo da peça original e opta por nos colocar frente a frente com o rosto enlouquecido de Woyzeck/Kinski. Nestas duas cenas figura-se uma tensão essencial - de toda a história do cinema - entre rosto e paisagem. Se o Citizen Kane de Orson Welles punha em questão a possibilidade de representação do Outro através da ausência de um corpo, o Woyzeck de Herzog coloca a mesma questão através da pura presença de um rosto composto pela paisagem. 

Para Herzog, a paisagem, mais que um mero fundo, é um “pormenor” que veicula as emoções humanas. Por pormenor, o autor refere-se concretamente a uma parcela da imagem (como em Aguirre, esse filme que se inicia com uma paisagem sublime demais para se deixar domesticar pelo enquadramento da imagem). Kinski respondia-lhe, contrariado: “Não, a verdadeira paisagem do cinema é o rosto”. Estas duas ideias confluem numa concepção artística que é típica do romantismo alemão e do cinema de Herzog. No primeiro plano de Cobra Verde viria a figurar-se de forma brilhante esta espécie de dialéctica do abismo – um plano que começa num rosto que é, também, um reflexo da paisagem sideral que o rodeia; um plano em que coincidem a interioridade e a exterioridade. Esta tensão formal – entre rosto e paisagem, interioridade e exterioridade, transfiguração e representação – recupera o conteúdo central do nosso programa de Espectáculo e Cognição: o conceito de persona.

A pessoa (o corpo de Kinski) enquanto presença (aura) e não como mera questão de direito ou de facto – eis o exercício estético que Herzog leva ao limite em Woyzeck, através da imagem da morte. Nessa morte tão cinematográfica entrevemos o desejo de um autor que leva recorrentemente ao limite uma obsessão pelo abismo da alma humana. Como se a tragicidade de um acto incompreensível fosse o álibi para dar uma razão de ser à imagem cinematográfica. Em Woyzeck, essa imagem-limite encontra expressão no som dos violinos extra-diegéticos (ou na nossa cabeça?) que nos haviam já assombrado ao longo de 90 minutos. Além dessa imagem sonora da loucura, a importância do slowmotion durante as cenas de clímax e catarse do filme (a morte de Maria e o plano final, junto ao rio) demonstram (tal como noutro filme os planos de perigosos saltos de ski o comprovam) que aura da imagem cinematográfica é, para Herzog, uma ferramenta determinante para a suspensão cinematográfica do real – um real em que não há paisagem indissociável de resquícios da alma humana; uma paisagem em que vislumbra o abismo do sublime.

O cinema de Herzog não é assim tão distante, por tudo isto, daquilo que Büchner nos deixou em fragmentos dispersos. A violência das imagens (e fragmentos) que contam a história de Woyzeck é contemporânea da razão cinemática da modernidade, e de que o cinema foi (e continua a ser, ainda que de formas bem para lá da sala de cinema) a forma capital. 

 

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Aulas dadas em Novembro – 8

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