Primeiros passos em direcção ao fragmento dramático "Woyzeck" de Georg Büchner

8 Novembro 2018, 16:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

 

NOVEMBRO                                              5ª FEIRA                              14ª Aula        

 

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Woyzeck (1836) de Georg Büchner

Consulta aos materiais disponíveis e comentário geral dos mesmos.

Esta unidade programática será retomada no dia 27 de Novembro, após presença de convidados em aula e entrega e correcção do 1º teste de avaliação de conhecimentos.

 

1. Woyzeck como produto do tempo histórico e de época.

Ao núcleo Woyzeck dedicaremos exposição sobre o autor e a sua época, nomeadamente o que constitui especificidade territorial, política e religiosa da Alemanha no início do século XIX.

A ideia de resumo pode ser-nos útil embora não cubra a realidade de três séculos. Como posso falar em meia dúzia de minutos, por exemplo, de uma mancha geográfica, política e religiosa que na Alemanha criou prolongados conflitos e causou muitos mortos, relacionada com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) que marcaria todo o séc. XVIII, já vinha do séc. XIV, e que tem a ver com a organização territorial da Alemanha depois do Sacro-Império romano-germânico, divisão essa que é política, social e religiosa?

 


 

 

Entre a Polónia, a Hungria, a França…

O tecido geográfico alemão, na abertura do século XIX, era ainda em termos de mentalidade uma “manta de retalhos” (Estados católicos maioritariamente a sul, Estados protestantes, maioritariamente a norte, pequenos principados com total autonomia e poder de decisão. O espírito absolutista, ainda que combatido pelo pensamento Aufklärer (Iluminismo), ao longo do séc. XVIII, não foi suficiente para transformar comportamentos e eliminar despotismo e provincianismo.

Sirvo-me de imagens da Geografia política para abreviar um complexo encadeamento de posições e intermediações que de modo directo ou através da diplomacia económica, e sob o poder da Prússia e da Áustria, os dois principais estados da Confederação Germânica (ainda com 39 Estados-Nação no séc. XIX) influenciam o pensamento crítico de Georg Büchner.

Quando em 1871, o Império Alemão (II. Reich) se unifica sob a vigência do Imperador Guilherme I da Prússia, e termina a guerra Franco-Prussiana (1870), já Büchner tinha morrido há 34 anos. Mas foi durante o tempo de Büchner que nasceu o acordo aduaneiro (Zollverein, 1834) que iria contribuir de forma muito pragmática para a verdadeira constituição do II Império Germânico. Uma vez mais a Prússia, pela mão de ferro do chanceler Otto von Bismarck, fomentava acordos aduaneiros entre os estados com o objectivo de implementar o comércio e a indústria. A Áustria ficou de fora por opção.

 

Unificação política e administrativa da Alemanha, 18 de Janeiro de 1871

Este fenómeno, independentemente do desenvolvimento económico e social para o país e da intencionalidade de unificar politicamente uma nação, deixou intocados, porque não era isso que interessava, os princípios e valores que tinham orientado Büchner na sua trajectória errática de vida.

2. Como cruzar Woyzeck com Büchner

O Woyzeck – fragmento dramático, para além de referenciar um enquadramento histórico, político e literário (a não pertença, por exemplo, de Georg Büchner ao movimento de escritores de «A jovem Alemanha») de que talvez não tenhamos um conhecimento muito profundo, questiona, e isso podê-lo-emos comprovar, o extremar de uma crise de valores dentro da própria sociedade burguesa alemã e do indivíduo nela. Talvez seja esse o assunto principal da obra. No entanto, colocam-se ao fragmento dramático muitas outras questões de natureza vária como, por exemplo, as fontes a que Büchner recorreu, ou a fixação do texto depois da sua morte. A questão da autoria não é posta em causa, mas a organização textual deriva de diversas opiniões académicas que pretenderam a todo o custo fundamentar a legitimidade das suas férreas posições quase se esquecendo de que havia um autor. É importante termos em conta que a vida deste autor com diversas ocupações profissionais (medicina, filosofia, política, literatura, e dentro desta o ensaio, a poesia, a escrita dramática, a epistolografia), e com um comportamento muito descentrado do que se considera ser a normalidade, criou um espectro casuístico que precedeu a escrita de Woyzeck e que se inspirava em casos reais de criminosos no seu Estado de origem, Darmstadt.

 

Johann Christian Woyzeck em 1824.

 

A imagem do Woyzeck real tem apenas a função de ilustrar a pesquisa de Büchner. Os outros assassinos não tiveram direito a registo de gravura ou desenho.

Georg Büchner (1813-1837) é um caso singular no espaço da literatura alemã, na medida em que não integra qualquer escola ou movimento estético, surgindo antes como uma figura errante e que desempenha um acentuado papel de sismógrafo do seu tempo. Büchner ocupa-se ainda de ser um refugiado político.

 

August Hoffman, Georg Büchner, cerca de 1835, gravura, s.d.

 

 

 

Jean Baptiste Alexis Muston, Georg Büchner, Esquisso, cerca de 1835

 

Jean Baptiste Alexis Muston, Georg Büchner, “La mer des roches”, Desenho a lápis, 1833

 

Folha de caderno de apontamentos de Georg Büchner na altura em que frequenta a Faculdade de Medicina em Estrasburgo, em 1831.

Eis Georg Büchner em quatro registos imagéticos. A intenção é podermos observar um retrato mais formal (o único guardado do autor oficialmente para a posteridade) e a intimidade recriada pelo pintor, colega e amigo de Büchner, Alexis Muston, que nos aproxima com maior verosimilhança do que terá sido o médico e dramaturgo alemão, sobretudo nos últimos anos da sua vida. A folha de caderno pode ser útil a quem se interesse por grafologia.

 

Iremos deter-nos em conversa livre sobre a condição estrutural da obra Woyzeck, fazendo leitura de algumas cenas da versão cénica apresentada no Teatro de São João no Porto, em 2004. Procuraremos identificar a polivalência dos espaços e condições temporais através da articulação entre cenas, a dança das personagens, a identificação caracterial das mesmas, o seu contexto social (referência ao pauperismo), mas também os traços de doença em Woyzeck potenciados pelo tipo de vida que leva. Apontaremos ainda a presença de uma forte dimensão popular no corpo da peça através do recurso a canções, a citações da Bíblia, a ditados populares, para além de virmos a referir a existência de uma opção intertextual mais complexa que recorre a passagens do Fausto de Goethe ou a suas personagens (por ex. o nome de Margarida, mas também o crime praticado por Woyzeck poder ter vagas semelhanças com o crime praticado por Fausto). Shakespeare também poderia ser identificado, quanto mais não fosse pela concepção dramatúrgica que se afasta do drama tectónico. Há, porém, a título de exemplo, uma inspiração em Otelo, V,2 na cena 31 de Woyzeck.

 

Leituras recomendadas:

- Georg Büchner, Woyzeck, tradução e prefácio de João Barrento, Porto: Teatro Nacional São João, Campo das Letras e Húmus, 2010.

- Georg Büchner, 1834, O mensageiro de Hesse (primeira mensagem) e Cartas (1833-36) in: João Barrento (selecção, tradução e notas), Literatura Alemã – Textos e Contextos (1700-1900), vol. II, Lisboa: Editorial Presença, 1989, pp. 45-58.

- Os pareceres do Dr. Johann Christian August Clarus (excertos), tradução de Anabela Mendes, in: Georg Büchner, Sämtliche Werke und Briefe. Historisch-kritische Ausgabe mit Kommentar. ed. Werner R. Lehmann, vol. 1 München: Hanser, 2 1974, pp. 487-492, 500-503, 508-510, 514-516, 547-548.

- Georg Büchner, Sobre nervos cranianos – Lição pública proferida na Universidade de Zurique em 1836 (excerto), tradução de Anabela Mendes, in: Georg Büchner, Sämtliche Werke und Briefe. Historisch-kritische Ausgabe mit Kommentar. Ed. Werner R. Lehmann, vol. 1 München: Hanser, 2 1974, pp. 291-293.

- Walter Hinderer and Henry J. Schmidt (eds.), Georg Büchner – Complete Works and Letters, translated by Henry J. Schmidt, New York: Continuum, 2003, pp. 245-303.

- Anabela Mendes, „Büchner em diálogo com Espinosa“ in: Ana Fernandes (org.), 2004, Visão de Portugal por Estrangeiros – 3ª Jornada, Viseu: Universidade Católica Portuguesa, pp. 69-84.

- Anabela Mendes, “Dissecar, decompor, escalpelizar. Georg Büchner – anatomista e poeta” in: Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, nº 28, 5ª série, 2004, pp. 43-53.

- Anabela Mendes, ”O corpo continua a monte e a assombrar – Um tributo a Georg Büchner, in: Rui Pina Coelho (Dir.) Sinais de Cena – Revista de Estudos de Teatro me Artes Performativas, Série II, nº 1, Lisboa: Orfeu Negro, pp. 93-100.