Entre criar ordem e querer afirmar a desordem

6 Outubro 2016, 18:00 Anabela Rodrigues Drago Miguens Mendes

Mantemos o estudo dramatúrgico em laboratório da obra Gaspar de Peter Handke. Desta vez concentrámo-nos no processo de consciencialização da aprendizagem de acções (contar e comparar, p. 42) pelo protagonista que não correspondem a uma aprendizagem natural. Esta processa-se na 1ª infância resulta normalmente de um desenvolvimento harmonioso da criança saudável. Na peça, Gaspar é um jovem adulto privado deste processo em tempo certo, alvo de uma estimulação excessiva e violenta para as suas capacidades cognitivas e afectivas e que o obrigam a tomar decisões sem tempo para as amadurecer.

Contrapusemos a esta constatação várias proposições enunciadas pelos pontos-instrutores e que se relacionavam de forma esvaziada e contraditória com a atitude para com o trabalho entre empregadores e empregados. Trabalhar não tem de ser uma tortura nem nos deve diminuir nem confundir independentemente das tarefas realizadas. Constatámos que o cenário apresentado na peça escrita há 50 anos mantém as mesmas linhas gerais na sociedade contemporânea.

Voltámos ao tratamento da linguagem, fonte primeira da aprendizagem de Gaspar, e constatámos que a parte 27 da peça (pp. 51-64) é a mais longa de todas as partes da mesma. Essa dimensão extensiva pretende acentuar uma fase do processo que se organiza em torno do agrupamento de frases e sua estruturação sintáctica, inclusão de pontuação, sem que exista compreensão de conteúdos e de significado. Voltamos aqui ao ponto de partida da aula: contar e comparar.

Curiosamente detectámos que algumas das frase de Gaspar poderiam ser pequenos poemas expostos (p. 52, pp. 53-54). E isto porque Gaspar não deixa de colorir as suas frases tornando-as metafóricas e abrindo caminho para a duplicidade das coisas e suas representações. Em contrapartida, os pontos-instrutores ocupam-se quase exclusivamente de frases estereotipadas. Acabamos por compreender a multiplicidade de caminhos que se desenvolvem entre ordem e desordem e a pertença dos mesmos às duas forças em conflito.

A parte 27 termina com uma citação (há outras) em que Peter Handke homenageia o seu conterrâneo Ödon von Horváth (1901-1938) ao inserir na peça a pergunta: «Porque é que apenas vermes tão negros esvoaçam aqui à volta?» A frase é retirada da boca da personagem Elisabeth, na peça Fé, Esperança e Caridade (1932), quando esta se pretende suicidar. A frase associa a morte a uma distorção espacial. A frase surge após Gaspar se esforçar por se reconhecer como indivíduo sob a alçada de um pensamento tautológico que representa o esforço físico e mental da personagem perante um conflito profundo. Tal como acontece com Elisabeth na peça de Horváth.

 

Leituras recomendadas:

HANDKE, Peter 1974, Gaspar | Grito de Socorro, Tradução de Anabela Mendes, Colecção Teatro Vivo, Lisboa: Plátano Editora.

FEUERBACH, Anselm 1833, Caspar Hauser – An Account of an individual kept in a dungeon, separated from all communication with the world, from early childhood to about the age of seventeen

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